Germina



longeara-se desbotada

de memórias inventadas, 

a vida.


nenhuma dor pairava

suas pálpebras

recém-libertas.


manchas do poente

faziam de conta

que nos deixavam

a viver

até um pouco 

mais tarde

que o impossível

permitisse




[Poema inédito]




Labirinto



Ferida de gente.

Feita de coisas que nos tocam,

agarra-se naquilo que nos salva.

Quando saiu ao sol,

deitou-se ao nosso lado,

no gramado, sem trazer respostas.

Veio como esporos ao vento.

E se decidir partir?

E se partiu entre nuvens?

Cansada de ouvir preces.

desgastada por indiferenças.

leva-nos aos seus labirintos,

faminta como Artêmis.

Testa-nos diante ao desejo de caos.

Respira por nós o cheiro 

da chuva por vir.

Mostra os devires 

que nos expõem à vida.

Embrulha os homens 

em visões de abismo,

e os reconhece 

como reflexo nunca visto.

Mantém os olhos abertos

ao nos ver passar.

Voltada às coisas que não vemos.

Socorre-nos, enfim,

de um fim do mundo qualquer.

É sagrada ao buscar perder-se: 

aqui, no único tempo que existe.

Sempre a um passo de salvar-se de nós,

a fé deixou-se ir,

sabendo que voltaria: renovada.

Se há de seguir,

que siga.

 

 

 

 

 

 

Ao menino refugiado

 

 

Hoje,

cruzei mais uma fronteira,

sem querer.

Alguém me puxou por cima da cerca.

Alguém me segurou do outro lado.

Alguém quis me jogar de volta.

 

Aqui,

pessoas carregam sacos plásticos com miudezas sem sentido,

pedaços de coisas mudas,

e malas esfarrapadas com o que restou da vida.

 

Nestes dias,

os abraços

são mais dolorosos,

porque há o desabraço.

 

Nestes dias,

os olhares

tornam-se um pouco mais tristes,

porque há o desolhar.

 

Nestes dias,

o aperto no peito

aperta diferente.

Pois há também

a indiferença.

 

Nestes dias,

o destino rejeita-nos de antemão.

 

 

 

 

 

 

Ar revolto

 

 

Os eucaliptos

Aplaudiam a noite

Porque esta lhe

Trazia o céu estrelado, às vezes.

E era por isso que desafiavam a gravidade.

Resvalavam folhas entre si

Para fazer ventar

A madrugada para debaixo de suas raízes

E na manhã seguinte,

Talvez eterna,

Faziam nascer novamente o ar revolto,

aos pés

Daquilo que os movia.

E o faziam sem ao menos

Saber o que é o amor

Assim, jamais se esqueceriam de ser

O que sempre foram.

Sabiam que o que lhes restava

era ser

E o faziam para desgravitacionar

A existência.







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Fio de Teia



Fio de teia 

preso ao vento,

lançado fora da correnteza

dos acontecimentos.

Suspenso

por um momento de sonho, 

rodopia em queda livre até virar chão.


Designado como eternidade 

assume a forma suprema da inexistência.


Fio de teia

preso ao vento

é sinônimo de resistência 

ao tempo que deixou de ser agora.


Seria uma derrota perder-se ao vento?

Ou 

Seria vitória libertar-se rumo ao esquecimento?







Fado Quarentena



"Poderei suportar o meu olhar
quando me vir, confundir-me nele?"
(Manuel António Pina)



Ao acordar, era mais que um:

parecia não ter limite, que não fosse nenhum.

Sem tocar o solo com os pés que já não eram mais meus.

Posto que houvesse me transformado em outro, sem motivo algum.

Nos primeiros passos,

ainda encalços, apartaram-me de ser

o ser que pudera, quem sabe um dia, me tornar.

Há um segundo e meio atrás,

quando ergui as pálpebras com convicção,

avistei como deveras, de fato, ser o tempo.

Quando só aquilo é o que me desfaz num piscar de vida.

Fixei o olhar através da janela para tentar repetir o gesto de ontem.

E me tornei, só agora, aquele velho alguém de sempre:

mera paisagem de outrem.

Enfim, algo além do que jamais tinha vivido: a desaparecer.

E a respirar nem tão fundo como a vastidão do verbo,

nem tão raso como o mundo.

A me arrastar como nuvens aos ventos findos, 

desses que nos carregam mar adentro.

Por instantes, achei que estivesse

ainda cá, à cama, sonhando como nunca outrora pudesse:

As mãos apoiadas a pia. Face a face, a observar-se.

Como por obrigação.

O mesmo dorso a se reconhecer.

A fitar este idem desconhecido mais uma vez.

Por reflexo, pude absorver o que passei a ser,

de repente.

Como um estranho a lavar as mãos e os rostos

Fui novamente aquilo que quis tornar-me pelo caminho à frente.







Friez Ausência



É tarde para seu atraso

chegar a tempo.

Para achar

que a noite não vem.


Para não acordar

de seu pesadelo quando anoitecer.

Para não ser

mais quem se é.


É tarde para sanar

sua ode ao ódio.

Teu silêncio

fazer-se transparente.


Para ficar

sem palavras mudas 

e calar-se

de friez ausência.


É tarde para constranger-se

por rupturas assépticas.

Cedo para vestir-se

de amanhecer.


 

(Para Hilda Hilst)







Sob o pé de figo

 

 

Foi-se como um dia

tudo o que poderia ter sido,

sem motivo.

Até o desenho de nuvens borrado

nas ruas de asfalto da infância.

Foi-se tanta gente 

sem ter sido o que queria.

 

Foi-se o sorriso que acabei de ver,

e o pique esconde da imagem que se escondeu,

para se manter onde ninguém

quer saber.

Foi-se até o que poderia

nunca ter acontecido.

 

Foi-se o inseto obtuso

que um dia prendi

no potinho de vidro.

Do qual também já haviam partido

algumas azeitonas verdes e miúdas.

 

Quem se foi em meio a este sol amanhecido?

 

Foi-se o molho de chaves 

que um dia abriram as portas da casa onde nasci, 

como um intruso.

Foi-se o seo Emílio da casa da esquina,

foi-se a dona Ondina,

a dona Concheta e tantas

velhas que se foram de tanto ser meninas.

 

As mãos na enxada capinavam sonhos telúricos,

nas manhãs de sábado.

O rastelo levava apenas as folhas graúdas,

que voltavam a ser terra com o tempo umedecido.

 

Já a foice, essa nunca existiu completamente,

mas continua ali, pendurada na parede imaginária.

É certo que um dia voltará a ser usada no fim da linha.

E virá como beijo frio de lâmina cega.

 

Foi-se a chuva,

que vinha chegando.

Foi-se a coisa "quase sem querer".

Os azulejos grenás e brancos

da área da frente da casa,

o dente jogado pra cima do telhado,

e até o telhado 

se fez ausente de amanhã.

 

Já os canarinhos do reino, soltos,

estes não se foram.

Ainda batem as asinhas por aí,

mesmo mortos e

enterrados sob o pé de figo.

 

O pé de figo, sim, se foi.

Mas não acreditem muito no que digo.

Eu também já fui.

E o pé de figo, sim,

ainda pode estar vivo,

sem precisar ter existido.







Arames

 

 

Atrás de mim

arames farpados dão o tom.

Emaranhados, embaraçam vidas,

mas de forma alguma limitam

o que já sou.

 

Todos estes rostos em sofrimento

trazem-nos, logo mais adiante,

uma imensidão jamais vista

De medo, esperança e o que mais vier.

 

Sou exatamente essa menina,

de não mais de quinze anos de idade.

Seguro um bebê no colo

de não mais de um ano e meio, sem identidade.

 

Como todos aqui

sinto os pés secos,

enquanto congelo o que sobrou do olhar nesse pedaço

de solo, que também é meu,

mas que me negam.

 

Como tantos à minha volta, sou só.

Estanco os lábios

sem esboçar qualquer sobra de sorriso,

mas não porque precise, apenas porque sumiu do rosto.

 

E na escuridão da noite órfã, que é de todos,

vi as mesmas estrelas

de todos.

Mas as vejo de uma forma mais clara que eles.

 

Quando pegarmos a estrada com esse nosso

quase nada a tiracolo

ficarei para trás

para sempre.

 

Enroscada nos mesmos

arames farpados.

De                   todos

nós.








Menina: és o que és



Fujas dos bombardeios para sempre,

garota das maçãs do rosto coradas, que contrastam com os olhos esverdeados.

És o que és.


Seu tempo ainda não chegou.

Esse teu choro que busca desdobrar-se em sorriso

Cabelos esvoaçados como um dia impreciso.


Fujas dos bombardeios para sempre

garota das maçãs do rosto desbotadas, que contrastam com os olhos avermelhados.

És o que és.


A boca esconde um pedido, inclinada a tratar coisas da dor.

O caminho das lágrimas já está trilhado há tempos

na face enrijecida que a trouxe até aqui.  


Fujas dos bombardeios para sempre

garota das maçãs do rosto negras, que contrastam com o tom dos olhos azuis pálidos.

És o que és.







No meio da chuva & neons



Vives a desenhar linhas

aleatórias em lagos de sonhos congelados.

E se esse gelo

se quebrasse de repente

a teus pés?

Então congelaria meu coração mais uma vez.

Como olhares no elevador

numa manhã de olheiras e óculos escuros.

É o que se passa quando atravessas

ruas e ruas no meio de chuva & neons.

No meio de uma noite torrencial.

E saltar com os bicos dos seios e os cílios,

que perfuram o dia qual teu punhal de abrir cartas.

Pular sobre este barquinho imaginário,

dobrado com uma folha do teu diário,

que corre pela enxurrada

no meio-fio das desilusões.

Até ser engolido no próximo bueiro.

E tu, flutuando tão rápida e macia pelas memórias,

mas nunca como se estivesse à deriva.

Você está preparada para esta brecha na vida?


Teus dedos da mão direita esticados

tateiam, mas não interrompem,

a trajetória daquele barquinho-diário

prestes a ser

engolido na próxima boca de lobo.

E saltar num rodopio sobre a lâmina fria

que lhe aquece o corpo

e lhe acentua o côncavo das virilhas,

a cortar o mesmo gelo,

des-a-linha-da-mente,

como fez com tudo o que puseste de lado ao partir

para deixar para trás rabiscos cheios de propósitos

deslizaria livre outra vez,

ainda que esteja a escrever longas e tortas linhas

com palavras de amor inexistentes

ao saltar entre as margens do abismo com seus surrados patins 

esquecidos no fundo do guarda-roupa. 



(Para Ana Cristina Cesar)



 

 

 

 

A praia

 

 

Engulo um punhado de terra arrasada

enquanto roço o dorso na fumaça amareada de desencantos.

Os rochedos desconfiam dos jogos de amar e desamar.

 

Aprazíveis praias vazias enlaçam-me nas névoas do destino ocaso.

 

Derivo nos espaços que me sobram

 

Ressurjo em busca de ar, à beira de um oceano qualquer.

 

A face direita do rosto afundada na areia,

 

estanco o fluxo que me trouxe à vida.

Respiro o dia para deixar de ser fim.

Embaraçam-me sonhos a perder de vista.

 

Trago olhos exilados,

lábios arroxeados

cílios marejados.

Também sou criança.

 

Restou-me nos pulmões o sal da saudade perdida.

Não sinto mais o gosto de conchas em minha língua,

Sílabas indizíveis me trouxeram até aqui.

 

Invado a praia sem fazer castelos,

Sem pipa, bola ou boia.

Sou mais um Imperador de Sorvetes das brincadeiras que perderam a esperança,

o quase amor na brisa de outrora,

quem você não deseja ver caído em uma manhã ensolarada de marés baixas

 

Não avisto as nuvens de hoje,

mas sempre me entrego a elas.

Para ficar a s.ó.s.

Com meus ossos sobreviventes

Que se dissolvem na manhã fria

sob um sol solene que havia

desolado neste solo

da Turquia.







1888



no super mercado

numa salinha dos fundos, no ano de 2019,

enquanto homens e mulheres

dirigem seus carrinhos de compras ou carregam suas cestinhas,

os alto-falantes anunciam efusivamente, entre um bate estaca e outro,

a promoção da hora pela metade do preço.

e um negro é chicoteado

por dois seguranças-capatazes-capitães-do-mato a serviço do Super Deus Mercado,

porque queria uma barra de chocolate,

mas não tinha dinheiro para pagar.

foi amordaçado, despido e chicoteado com fios elétricos

aos 17 anos, na capital financeira do Brasil.

ele é um catador de lixos recicláveis nas ruas.

sem pai nem mãe vivos.

a caixa registra mais uma compra

um consumidor passa o valor no crédito, em três vezes.

o repositor de mercadorias arruma as prateleiras de embalagens da marca de sabão em pó, que deixa as roupas mais brancas

o aposentado de chinelos pede dois pães moreninhos

"troque sua nota por um cupom e concorra a uma viagem a Salvador", diz o anúncio num cartaz.

o chefe da contabilidade com o cabelo cacheado e lambuzado de gel,

na sala ao lado, escuta uns gritos e sorri com o canto da boca

levanta-se e toma uma xícara de café com cinco gotas de adoçante barato

enquanto o jovem negro, nascido em 2002,

é chicoteado na sala ao lado, durante 40 minutos.

1888 é um ano que não terminou.

Ogum não esquece. Xangô não esquece.



[Poemas do livro O AradO de OdarA (Uma distopia tropical). Patuá, 2021]



 


 

 

 

 

Maurício Simionato (Assis/SP, 1973). Poeta, jornalista, colecionador de vinis e pai da Clarice e do Vinicius. Lançou os livros de poesia Impermanência (selecionado pela Secretaria de Cultura de Campinas, 2012); Sobre auroras e crepúsculos (Multifoco, 2017), lançado na Bienal do Livro do Rio/2017 e O AradO de OdarA (Patuá, 2021). Tem poemas publicados em diversas revistas especializadas em literatura do Brasil e de Portugal e em mais de dez antologias poéticas. Como jornalista, foi correspondente na Amazônia por três anos, com passagens por diversos sites e jornais. Vive em Campinas/SP.