Dígrafo
Não me vendi, nem venderei
por um prato raso
de lentilhas
Não me contento com migalhas
mas a asa me basta
da abelha
Te amo quando te flagro
a cada ato
falho
Te amo quando te rapto
o olhar, olho puro
olho
Te amo, decoro
e escrevo em mil
folhas
(De canalhas e pulhas
quero distância de infinitas
milhas
Em quem achincalha
jogo pedra brilho e verso, nunca
a toalha).
Toma teu ódio
Toma teu ódio
Ele é todo teu
Serve-te dele, sorve
O que foi cultivado
Com o cuidado
Que só os doentes
Sabem ter.
Toma teu ódio
Ele é teu alento
Teu talento, teu melhor: teu ódio é teu
Remédio.
Ela
Ele crê,
Ela cria
Ele crença,
Ela criança
Ele fere,
Ela onça
Ele imune,
Ela imensa.
Que escrever é fácil
Que escrever é fácil: verdade
Que há o que dizer: mentira
Que há muitos poetas: verdade
Que há sempre poesia: mentira
Que o riso é grave: verdade
Que a lágrima é fria: mentira
Que nós temos febre: verdade
Que nós temos tempo: mentira
Que te quero muito: verdade
Que te espero sempre: mentira
Que sou transparente: verdade
Que digo a verdade: mentira.
Pedagogia
Desaprendi
A me enfeitar pro baile
A virar estrela
A rezar o terço
Como se toma chuva
Como se telefona
Mas vou reaprender.
Aprendi
A sorrir sem graça
A fazer de conta
A voltar a casa
Como se põe a mesa
Como se corta a asa
Mas vou desaprender.
Kenns tu das Land?
Onde falta vacina e sobra
chacina
Onde fome é causa de
chacina
"Saudades" é cidade-sede de
chacina
Onde se finge faxina (mas se faz
chacina)
Onde se mata menino e
menina
Onde quem não mata,
assassina
Onde se mira e acerta o alvo:
melanina
Vacina é chamada
vachina
Onde se xinga a
China
O que não se cura se
extermina
Onde idolatria
bovina
Segue falsa
medicina
Onde não se dorme onde não se sonha onde não se vive
sem dois dedos diários de
morfina.
[Poemas inéditos]
Escolha
(a dois) de um endereço
(a dois) de uma receita
(a dois) de um nome
(a três) de outro nome
(a quatro) de balas pipocas risadas um filme
(a sós) de um perfume, um deus
de um rumo, um ato
das fotos do porta-retratos.
Boneca
Esta boneca
teve os olhos costurados
e achou que isso era bom.
O que ela via
era um céu todo estrelado
cores, luzes e neon.
Mas todo o brilho
só existia no escuro ocluso
de suas pálpebras erradas.
Certa feita
a costura se desfez,
que se encontrava surrada.
Aos poucos
os cílios se separaram
e os olhos se abriram para a luz do dia.
Foi tão melhor
desiludir-se, ó ironia,
que ela nem reparou como isso doía.
Peixe
Pior que peixe fora d'água
é ser peixe em água turva
(não se enxerga onde se nada)
ser peixe em água dura
(onde não se nada nada)
Ser peixe em água mole
que se molda e insinua
se conforma e se curva
que não bate nem perfura
Nadar em mar conhecido
amanhecido, viciado,
mar de cantos, esquinas,
caras e cartas marcadas
Escalar a correnteza
sendo peixe de oceano
ter de rio o espírito
e súbito ver-se no mar
morto por engano
Ter de nadar em mar
"de soberba desatada"
querendo gostar os mares
"nunca dantes navegados"
É procurar o cardume
e encontrar a manada
estar em água cercada
de terra por todos os lados
É em rede aprisionado
ver moles de peixes passando
livres, desafogados,
exibindo reluzentes
quatro estilos de seu nado.
[Do livro Porta-retratos. Ateliê Editorial, 2015]
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