©alexas
 

 

 

 
 

 

 

 

CARANGUEJOS



Era a hora em que a maré baixava e os caranguejos saíam de seus esconderijos para correr na areia e morder o que encontrassem. Era também a hora do meu passeio diário pisando o olho d'água. Quase tropeço por acaso na cabeça de um sujeito. Ele estava enterrado até o pescoço. Vivo. Vou repetir para que fique bem claro: havia um homem vivo enterrado até o pescoço na areia da praia, perto do olho d'água. Fiquei de cócoras a seu lado, observando-o, e ele me agradeceu a atenção. Quase chorou ao ver que alguém tinha aparecido para o salvar. Quando percebeu que eu não fazia nada para tirá-lo de lá, primeiro me dirigiu palavrões, em seguida me prometeu dinheiro para ajudá-lo a se livrar. "Sinto muito", eu disse, enquanto espantava os caranguejos que se aproximavam, "mas pense o senhor no inusitado desta cena. Veja só, eu estava andando aqui na praia e encontro um sujeito enterrado na areia, só com a cabeça de fora, e tem uns caranguejos em volta, querendo morder sua cara e seu pescoço e suas orelhas. Isso é uma coisa extraordinária, um fenômeno, tenho certeza de que jamais terei outra oportunidade na vida para ver algo assim". Continuei observando-o por alguns minutos. Sorri algumas vezes para ele. Quando me cansei, desejei-lhe boa sorte e segui o meu caminho, olhando de vez em quando para trás.







O PERNIL



Num dia qualquer, há algum tempo, recebemos em casa, sem qualquer explicação ou motivo especial, um pernil cru. Esse fato produziu na família um choque emocional de grande proporção. Ficamos todos sem palavra quando desembrulhamos o pacote e vimos o que havia dentro. Era uma perna de porco perfeitamente cortada, simétrica e coberta por uma capa dourada de gordura, que lhe dava um aspecto quase sobrenatural. Nenhum de nós, nunca, tinha visto uma coisa como aquela. Resolvemos, por unanimidade, que ela deveria ser pendurada no teto da despensa até decidirmos a data para degustar tão excelente iguaria. Logo colocamos a ideia em prática e, em turnos, passávamos vários minutos por dia olhando-a, adorando-a em sua solidão perfumada. Minha mãe explicou, com paciência, como ela deveria ser cortada e de que espessura deveriam ser as fatias. Enfatizou que, nas profundezas daquela carne, existia, intacto, um osso que, ao final de tudo, serviria para fazer uma sopa deliciosa e suculenta. Se perguntássemos quando começaríamos a comer o pernil, ela respondia de pronto:


— No dia em que tivermos uma faca de cortar pernil.


Não poderia ser qualquer faca. Tinha que ser uma especial, que aparecesse em nossa casa de modo inesperado, ou inexplicável, tal como o pernil. Teria um cabo diferenciado, uma lâmina brilhante e um corte desafiador, preciso. Todos esperávamos, com ansiedade religiosa, o aparecimento dessa faca. Enquanto isso não acontecia, exibíamos nossa peça de carne como se fosse uma obra de arte — bela, inatingível, adorável. Lembro-me de trazer meus colegas de escola para vê-la: entraram em silêncio na despensa e levantaram lentamente os olhos para o teto. Um "oh!" em uníssono se ouviu. Não se ajoelharam diante da visão, mas faltou pouco para isso. As visitas que recebíamos, depois de tomarem chá com biscoitos, eram brindadas com uma passada silenciosa pela despensa, para que admirassem nosso suculento naco de carne. Minha mãe se desculpava por não lhes oferecer uma fatia daquele manjar:


— Ainda não temos a faca apropriada para o corte.


Poucos dias depois, o cheiro que vinha da despensa tornou-se insuportável e vimos, com tristeza infinita, a capa de gordura derreter por completo, expondo a nudez da carne, já tomada pelos vermes e pelas moscas. Com o coração apertado, concluímos que era hora de nos desfazermos do pernil. Não o jogamos na lixeira, e sim o enterramos no quintal, como alguém que tivesse falecido. Minha mãe o embrulhou com cuidado num pano de prato e toda a família ajudou na tarefa de cavar um buraco na terra.


Agora, sempre que descemos ao quintal, olhamos com tristeza para o lugar onde o pernil está sepultado. Nossa língua nunca sentiu o sabor daquela carne, nem sua textura, nem mesmo sua provável maciez. Tivemos que adiar esse prazer e esse sonho. Que falta faz uma faca apropriada!







A PROPOSTA



Eu lhe darei cinquenta mil reais em dinheiro vivo, livre de impostos, se você permitir que eu ligue agora para sua mãe e diga a ela que você sofreu um terrível acidente de trânsito. Que seu carro ficou acabado e que você está preso nas ferragens, correndo risco de morrer. Ou que foi atropelado por um táxi em alta velocidade. Qualquer tragédia serve, desde que verossímil. Fingirei que sou um agente policial e direi a ela que não sei se você poderá se salvar. Que uma ambulância já está no local e vai levá-lo para o hospital mais próximo.


Você só tem que aguardar duas horas depois que eu ligar para ela. Duas horas apenas, sabendo que alguém que você ama, e que ama você, quase morre de angústia, dor e sofrimento por conta de uma mentira. Passado esse tempo, você poderá se comunicar com quem desejar. Poderá ir à casa de sua mãe e lhe contar os detalhes desse nosso trato. Poderá falar que tudo não passou de uma farsa, enquanto ela olha para você com os olhos inchados e rebentados de tanto chorar. Poderá fazer o que quiser depois, desde que respeite as duas horas combinadas. Duas… intermináveis… horas.


E então, o que me diz? Quer o dinheiro?

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Mário Baggio é jornalista, escritor e blogueiro. Nasceu em Ribeirão Claro-PR e vive em São Paulo. Mantém o blogue Homem de Palavra, em que divulga diariamente sua produção literária. Publicou quatro livros de contos: A (extra)ordinária vida real (Autografia, 2016), A mãe e o filho da mãe e outros contos (Autografia, 2017), Espantos para uso diário (Coralina, 2019) e Verás que tudo é mentira (Coralina, 2020). Teve textos publicados em várias revistas eletrônicas, entre elas Vício Velho, Diversos Afins, LiteraturaBR, Literatura&Fechadura, Gueto, Ruído Manifesto, Crônicas Cariocas, Escrita Droide, InComunidade e Subversa. Participou da Antologia Ruínas, da Editora Patuá, e da coletânea de contos e poemas Fragua de Preces, editada em espanhol, junto a diversos escritores latino-americanos.