©joshua woroniecki
 

 

 

 
 

 

 

 

ensaio



estou à véspera de um poema

mas não sei se ele vem

estou em uma sexta-feira sem presságios

em um final de tarde sem esperar ninguém


dentro uma canção ensaia

arranjos novos de solidão.







serventia



enterrei gritos

em um terreno baldio


nasceu um poema enorme

onde amarro a minha rede.







ainda há noite



ainda há noite. e sede

muita sede. fome de ti

ainda as horas cavalgam o silêncio

com os cabelos soltos. e os vestidos abertos

quase nuas. livres, as horas da noite


ainda há noite

para a música descer sobre nós

com o seu manto melancólico

e a estrela azul

música e noite, amor, lume

és tu, meu poema, que me embriaga


ainda há noite e estou contigo

porque não foges de mim nenhum instante

por que quereria eu outro homem

se tu me tens assim e eu te adoro?







strip



quando chegavas

ao barulho do trinco

meu coração tirava o vestido.







quimera



a esperança da tarde é deitar-se com o sol

atrás da paisagem

a minha não sei dizer tão claro

tenho tantas, entremeadas


quando cai a noite

brinco de coisas engraçadas

invento mundos que me esperam

enquanto alongo as minhas asas.







a ninhada



a ninhada de palavras

não me deixa dormir


ser poeta é suportar

os peitos inflamados


e deixar a linguagem sugar

até sangrarem os bicos.







apenas uma fêmea



quero ser apenas uma fêmea

deitada livre no verde

me inspirando

e me esquecendo...


quero ser apenas uma fêmea

com os filhotes pendurados nas tetas

respirando o bafo de Deus.







colheita



apanho à noite palavras maduras

e guardo para o poema

que vem com fome

espreitar o que sinto


colho palavras simples

como se eu fosse camponesa

colhendo frutas nativas

que se come na bacia


pego cada uma e aprecio

encho a boca de saliva

e dou uma mordida

só pra sentir o ponto







a moça que habita



a moça troca o vestido

e vai para a janela


recua para esconder

o rosto na sombra

ou se debruça para mostrar

a brancura do colo


espia pelas frestas

e some

isca de sonho

para quem passa


poesia diz a placa

pregada na sua porta.







mistura



gosto de me juntar contigo

como partes da mesma bebida

ilusões de uma só loucura


e ficar assim nos teus olhos

ouvindo o nosso silêncio


é como se eu vestisse o meu ser

com a peça de tua roupa mais íntima.







cicio



eu tenho um poema dentro

feito de silêncios

quase silêncios

ou murmúrios do mar

o lento cochicho do mundo das águas

dos infinitos, das funduras

dos amores bem compridos, de todos ai ai ais

ai que esse chorinho do mar é feito meu poema

é quase um silêncio, que ele guarda um pedaço

pra se escutar

mesmo chorando ele canta

bem dentro de uma concha

que parece um ouvido

é quase um ouvido

e dentro, o poema do mar.







o garçom



o dia passa na minha frente

feito garçom elegante

erguendo a bandeja


inspiro o aroma 

das iguarias


minha boca se enche

os meus olhos seguem

famintos.







noção



eu sou o passado do meu poema

e só digo o que se transforma

num clarão apressado


o resto deposito

em uma pedra de silêncio.







poética



inesperada claridade

flor sem talhe

armadilha


sagrada ausência de nome

ser etéreo que me agarra


ave santa

que me apura

e me leva e me leva

às viagens mais azuis.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Márcia Maranhão De Conti é maranhense e mora em Goiânia. Além de poeta, é nutricionista e advogada. Tem poemas publicados em blogues, revistas e antologias. Publicou Luar nos Porões, em 2011 e, em 2013, ganhou o prêmio de poesia Hugo de Carvalho Ramos com o livro Na Fissura do Vestido. Entre os seus prêmios em poesia estão: Prêmio Nacional de Poesia Cidade Ipatinga (2º lugar em 2007 e 2013); Poemas no Ônibus e no Trem 2007/2009/2011; Prêmio TOC 140 da Fliporto/2013.