Abandonada



é o nome desta terra. o mar que retrocede e nos apresenta um futuro. cheio de incertezas. cercada ela agora nos pertence. não escorre mais por entre os nossos dedos. não escapa por entre as tábuas que tentam delimitá-la. a nossa chance de construir outra história. finquemos aqui a nossa bandeira. encerremos a nossa busca. deixemos para trás os nossos erros. este pedaço de terra. nós o passaremos aos nossos filhos. junto das nossas histórias de conquistas. junto das riquezas que extrairmos deste tempo. que acaba de começar.







Governo



aqueles que primeiro cercaram estas terras. determinaram como deveriam ser ocupadas. falaram que seríamos uma família. porque não sabíamos como nos organizar. pais e filhos. mães e avós. não perceberam que havia outros caminhos. prometeram que tudo pertenceria a nossos herdeiros. inclusive aqueles que chegassem depois de nós. soberania sobre a terra e sobre os corpos. acedemos. afiançaram-se severos porém justos. estavam prontos para nos defender de quem ousasse questionar as boas novas. a nossa boa aventurança. quem discordasse do seu lugar. do nosso lugar. que escolhesse fazer morada em outra parte. e um dia invejaria nossas conquistas.







Natureza



entre essência e providência. tudo o que conquistamos é reflexo de quem somos. ou um acaso que apareceu em nosso caminho. o desafio de enxergar aquilo que não pode ser visto. explicar a nossa sorte e certeza. a fortuna de sermos filhos de nossos pais. netos de nossos avós. que viram estas terras surgirem do mar. terras de abundância. de leite e mel. a inveja dos nossos vizinhos. é isto o que nos define. escolhidos para conquistar. para perpetuar um futuro de glórias. donos de terras onde existem mais árvores do que conseguimos cortar. mais frutas do que soubemos nomear. somos nós o motivo de sua abundância. a sua verdade. a confirmação de um desígnio. a certeza de um futuro de prosperidade sem fim.







Rebelde



a pedra que resiste à ação do fogo. não aceita ser fundida com as suas semelhantes. corrompe a missão coletiva. semeia dúvidas sobre os caminhos escolhidos. há muitos anos. bijuterias sem valor. que subtraem nossa força. não precisamos de outros mundos. além daquele onde mandamos. não existem outros caminhos. além daqueles onde caminhamos. mas nós a recolocaremos no seu lugar. pois sabemos a nossa força. conhecemos a nossa história de vitórias. a resiliência dos nossos pais. antes que se juntem aos nossos inimigos. que fortaleçam nossos vizinhos. serão derretidas. tornar-se-ão a própria espada da justiça. que aponta para um futuro. que já sabemos qual é. e que não pode ser impedido.







Sepulcro



uma urna sob a terra. para enterrar os nossos mortos. eles que tanto amaram este chão. e morreram com ele. defendendo suas riquezas. que já não podem mais usar. certos de que a sorte estava ao seu lado. a morte como a vida também molda quem fomos. a terra tornou-se infértil. salgada por suas cinzas e enganos. o mar retorna. retoma o que um dia foi seu. por mais certezas que tivéssemos. por mais fortes que um dia acreditamos ser. as águas não nos obedeceram. nos obrigaram a buscar outro começo. a questionar quem fomos. e quem ainda seremos.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Marcelo F. Lotufo é professor, escritor, tradutor e editor. Para as Edições Jabuticaba, traduziu Sotto Voce e outros poemas, de John Yau, Que tempos são estes, de Adrienne Rich, Os elétrons (não) são todos iguais, de Rosmarie Waldrop e x, y, z, de Carolina Tobar. Publicou, também, o livro de contos Cada um a seu modo. Grava, semanalmente, junto de Daniel Francoy, o podcast "Erramos" e, mensalmente, o encontro online "Passaporte: Literatura", junto de Tarso de Melo, para o Instituto Goethe de São Paulo.