ahavah



lá, onde o vinho e o leite atam os peitos

a substância lanceolada inconsola a alma 

o dilúvio está aqui

e disseram-me mesmo que choveria

enquanto o esquecimento liteira a memória

o que dizem agora as letras ásperas 

de Deus, sem vogais?

todos os escritos são santos, ele me ensina

cartas sacramentais, nuvens de chuva 

ou um punhal para mais tarde

porque qualquer punhado de areia altera o deserto

e o juramento repesa os nomes das fontes

ó meu segredo, te rezo assim:

os textos devem manchar as mãos


[Poema inédito]







Ogiva



o corpo de todos

os ângulos inaugura um campo 

sonoro, novo, um idioma

velho, a dicção de uma lentidão primeira


se entro na ogiva, sou arrastada — pelos braços — 

até as anêmonas, depois das ramas,

anêmonas e algas, a cara

naufragada nos ombros

transformados em escarpas

que escalo


e o meu peito à sua boca, plasmado

como a peça de uma máquina

obturando a morte

com a outra mão


a recorrer a um fora quase

dentro, de uma janela aposta

entre meus dedos, como quem namora

os vãos e os hiatos, que há no nome 

próprio, as dunas sem pouso

o mangue


(o amor em colapso, em extremo

por inteiro)


acende e apaga, feito luas no corpo

natal prolongado, farol

dos barcos, a borra, a curva, 


o furo do conceito.


[Poema inédito]







poema



na ponta o hiato duro 

faísca —


(soldava o medo

— um selo de virgens —

tornava a cindir.


o que fulge na véspera

é esta tinta escura).


adensamento que aparta o sentido.


o poema degrada,


modela — o amor —

modula um nome.


[Do livro Refratário. São Paulo: Scortecci, 2012]







Perte du temps



As crianças brincam de atirar objetos ao fogo.

As crianças brincam de morrer sob os lençóis.

Sob os lençóis. 

Elas estão a sós. Elas não se lembram

do esquecimento.

Elas ainda não soletram a ruína.

Elas agora dançam com os lençóis.

Dançam elas com a morte?

O medo chegaria depois.

Elas cantam.

Quem suporta mais o olhar? 

Balbuciam.

Não sabem o que dizem.

Depois, será o tempo — repetem. 

E tudo repetem. 

E o mundo começa a lhes entrar pelas unhas

como se fosse ele que nascesse com elas.

O poema se abre

e se fecha.

Elas não sabem, mas o mundo as abandonará

em breve.


[Do livro Exceto na região da noite, 2019]




 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Maraíza Labanca nasceu em 1984, em Belo Horizonte. É doutora em Literatura Comparada pela UFMG e uma das editoras da Cas'a edições. Trabalha também com oficinas de escrita literária no Espaço a'mais. De sua autoria, publicou os livros Refratário (2012), Rés: o livro das contaminações (com Erick Costa, 2014), Partitura (2018), Exceto na região da noite (2019) e A terra O corpo (2021).