©svetlozar hristov
 

 

 

 
 

 

 

 

Barriga



Arlete tinha acabado de parir. Ela já estava no quarto repousando enquanto o bebê era avaliado, medido, pesado. O parto foi normal, de cócoras. Era assim que ela queria, tudo de forma natural, sem anestesias, sem cortes. O transe ainda permanecia, um turbilhão de sensações pulsava em seu corpo, além do cansaço físico. Logo após o parto, ela ficou tão entorpecida que começou a lamber os bracinhos do bebê, lambuzados dos restos da placenta. Não se atinou que estava num quarto de maternidade, que o mundo civilizado cairia em seu colo, retirando a sua cria de seus braços e entregando-a à enfermeira para o tratamento adequado. Soltou um grito lancinante. Renato, o marido, meio encabulado e sem saber o que fazer ou dizer, achou tudo muito esquisito, mas estava radiante por seu filho ter nascido com saúde.

A mãe, o pai, a sogra e o sogro entraram no quarto e Arlete já tinha sido preparada para receber, pela segunda e ainda não definitiva vez, o bebê. Ao ver a enfermeira entrando, pôs a mão na barriga. Entregue o embrulhinho, ela o embalou, com um pouco de desajeito. Logo veio a sogra querendo carregar o primeiro neto. Permitiu, a contragosto. De repente um aperto no peito, uma angústia que não conseguia entender. A sensação de torpor e tranquilidade que sentiu logo após o parto estava se transformando. Ficou confusa. Ver o seu bebê passar de colo em colo lhe pareceu uma tortura. A vontade que tinha era de expulsar todo mundo dali. Queria ficar sozinha, totalmente sozinha, ela e sua barriga. Sua barriga vazia.

Arlete começou a transpirar e ofegar. Renato foi o único que notou o nervosismo da esposa. Não se preocupou muito, ele também estava nervoso, um serzinho tão frágil como aquele necessitava de extrema proteção. Considerou até saudável a tensão de sua mulher. Só não esperava a reação seguinte: na velocidade de um espasmo, Arlete contraiu o corpo para frente e envolveu a barriga com os braços, como se estivesse sentindo muita dor. Permaneceu assim por alguns segundos enquanto o marido, agora amedrontado, foi ao seu socorro. Ela começou a chorar convulsivamente e o clima ficou pesado. Ninguém sabia o que estava acontecendo e resolveram sair com o bebê do quarto. Renato tentou confortá-la de alguma maneira, deu-lhe um abraço e disse algumas palavras carinhosas.

Passados alguns dias, com o corpo habituado às novas exigências e a relação mãe-bebê em quase perfeita harmonia, Arlete parecia um pouco mais calma, mas era só aparência. A experiência vivida naquele dia, alguns minutos de dor e angústia, ficou marcada no corpo, não conseguia se livrar daquilo. Tentava compreender o que havia se passado naquele momento e o que estava ainda acontecendo. Não conseguia falar com ninguém sobre o assunto, o sentimento de culpa a impedia. As emoções, mesmo que incertas, alcançaram o plano racional e a mente inquieta invocava, a todo momento, passagens da infância. Arlete era filha única e por mais que recebesse mimos e atenção dos pais, por mais que recebesse a visita de amiguinhas e primos, suportava longos momentos de solidão. Na época não se dava conta — ninguém se deu conta na realidade — e somente agora ela conseguia construir um cenário psíquico de suas lembranças: como se apegava às coisas, às bonecas, aos brinquedos, aos bichos de estimação que teve ao longo da infância. Chegou a guardar um hamster morto por dois dias sem que os pais soubessem. Não dividia ou emprestava nada a ninguém, um sentimento de posse doentio, e isso a assustava imensamente. Não queria sufocar o filho.

Mesmo sabendo que seria uma decisão arriscada, não podia mais. Logo depois que a criança completou um ano, pediu o divórcio. No ajuste com o marido sobre a guarda, já tinha o veredicto: ele fica com você, eu vou me mudar de cidade. Arlete encontrava com o seu filho duas vezes por ano, na época das férias escolares, e conversavam regularmente pelo telefone. Ela tremia toda vez que desligava, mas achava que era o melhor a fazer. Queria o seu filho livre. Livre da sua barriga.







Lei de Roma



De agora em diante a palavra amor está abolida. A Lei foi sancionada pelo Presidente da República e publicada no Diário Oficial. A palavra amor não poderá mais ser utilizada em cartas, e-mails, redes sociais, blocos de nota, camisetas, tatuagens, mesas, muros, paredes, postes, panfletos, livros, joias, canecas, adesivos, músicas, poemas, discursos, manifestos, leis, literatura de ficção e de não-ficção, híbrida ou multigenérica, escrita ou oral. A norma se refere à proibição do agrupamento das letras A, M, O, R, nesta ordem, sob qualquer circunstância.

O artigo 2º estabelece a proibição, também, do uso da palavra amor em outras línguas. Love, liebe, aysú, yêu và quý, amour, ai, miłość, liefde, amare, любовь, milovat, aroha, kjærlighet, amore, au-au, miau, cocoricó e outras — um rol exemplificativo — não podem ser mencionadas, escrita e oralmente. No artigo 3º há restrição quanto ao uso de prefixos, sufixos, abreviações, justaposições ou aglutinações. Poliamor, multiamor, protoamor, ultra-amor, semiamor, triamor, desamor, hiperamor, monamour, amorismo, amorície, amoreza, amado, amoreco, amorzinho, amorindo, amorzuco, amorico, amorzão, meuzamô, morzão, mozão, amore, more, mô, momô, estão fora de questão. No artigo 4º se explica e se impõe que nenhum subterfúgio pode ser usado para mascarar ou ludibriar as autoridades. Caso este artifício seja identificado, a multa será dobrada e a pena, em caso de prisão, aumentada em um terço.

No ato da promulgação da lei, o Presidente, com toda pompa e circunstância, procede a leitura integral do texto, seguida de uma fala decorada. Faz questão de enfatizar que a "tal" palavra não será mencionada em seu discurso, como um exemplo a ser seguido dali adiante. Um marco na história. Passada a palavra aos repórteres de plantão — visto que é um acontecimento de significativa importância para a nação, toda a imprensa foi chamada — as perguntas e dúvidas são abundantes. A primeira pergunta, feita pelo repórter do principal jornal do país, com certeza está na mente de todos:

— Presidente, e como ficarão as palavras já escritas até então? Serão mantidas?

— Impossível! Serão apagadas e deletadas da nossa convivência. Aos poucos faremos as buscas e todo material que aparecer com esta palavra será eliminado.

— Presidente, a própria lei contém a palavra escrita em seu texto. Cada vez que ela for aplicada, a palavra será usada...

— Impossível! Tomamos o cuidado de redigi-la e imprimi-la, em todos os veículos de comunicação, de uma forma que ela não precisará ser mencionada, em nenhuma hipótese: substituímos a "tal" palavra por ROMA AO CONTRÁRIO. Desta maneira, todos compreenderão o que está sendo previsto. Artifício brilhantemente inventado por minha pessoa, esta lei será nomeada de LEI DE ROMA.

— Presidente, como vão saber se estão falando ou escrevendo a palavra dentro das casas e ambientes particulares?

— Estamos preparados para isso. A tecnologia está a nosso favor. Captaremos até sussurros!

Não há aplausos. As perguntas vão se seguindo e o Presidente responde com um sorriso na cara. Puro orgulho. Amor, nunca mais!

Abriram-se vagas de concurso para o cargo Fiscal de Roma. Sua competência é fiscalizar e multar o infrator, utilizando-se de todos os meios de provas cabíveis em lei, podendo até mesmo prendê-lo em caso de reincidência. A função é dividida entre agentes de rua e agentes digitais. O Fiscal de Roma está, inclusive, legitimado a entrar nas casas, sem autorização prévia ou mandado de busca, se receber alguma denúncia anônima ou no exercício de sua função.

A população recebe a notícia com espanto e estranhamento. Alguns apoiam a medida. A princípio, as pessoas tentam esconder os seus pertences relacionados com a palavra proibida. Livros e cartas são armazenados em porões; roupas, joias e enfeites escondidos em gavetas fechadas à chave; publicações de redes sociais arquivados em nuvens particulares; tatuagens escondidas por roupas. Os muros e postes começaram a ser pintados. Os Fiscais de Roma já estão nas ruas vasculhando e multando aqueles que ainda insistem em desobedecer às ordens. Não há indulgência. O medo transita no ar. Pessoas são multadas e presas. Começam a lotar os presídios.

Pressionada pelos mandos e desmandos do Presidente e seus funcionários, a comunidade, cansada, se rebela. Arrumam forças e saem às ruas, em multidões, para protestar contra a nova ordem vigente. Ao invés de armas, beijos. Ao invés de cassetetes, abraços. Ao invés de sangue, pele. Nos cartazes, os dizeres: "Carinho"; "Afeição"; Sexo; "Amizade"; "Ternura"; "Cuidado". Um canto é entoado. O assessor de gabinete, sobrinho do cunhado da mulher do Presidente, se dirige à Vossa Excelência:

— Senhor Presidente, já abriu o seu computador hoje?

— Ainda não, meu filho. E o meu celular está com defeito. Ao invés de aparecer a tela inicial, aparece uma tela cheia de corações. Mande para o conserto.

— As ruas estão tomadas.

— Desarme-os. Prenda-os. Chame os Fiscais de Roma.

— Olhe pela janela e veja com os próprios olhos.







Strange Sketches



O apartamento está sendo reformado para que a proprietária o coloque para alugar. Ela vai à loja de material de construção, escolhe a cor das tintas. Para as paredes da sala, branco leite; dos quartos, branco creme. Faz a encomenda, paga adiantado. No dia combinado, ela recebe as tintas do entregador. Todas branco espuma.

— Bateu leite com creme pra fazer espuma?



*



Num domingo chuvoso o morador do quinto andar do prédio observa pela janela as gotas de chuva caindo sobre o telhado galvanizado da casa vizinha. Toc-toc-toc. Toca o interfone e o porteiro do prédio avisa que, por causa de um vazamento localizado no primeiro andar, vai faltar água por seis horas a partir do meio-dia. 

— Quer que eu tome banho de chuva?



*



Em sala de audiência o juiz e a escrevente aguardam o horário para começar os trabalhos. Enquanto a escrevente redige a pauta, o juiz despacha alguns processos. A cada assinatura, um processo arremessado ao chão. Terminada a tarefa, o juiz ordena que a escrevente recolha a pilha amontoada e leve para o cartório.

— Consegue fazer isso em dez minutos? 



*



Na antessala do dentista a secretária atende os pacientes conforme a ordem de chegada. Aos novos pacientes ela fornece uma ficha a ser preenchida com os dados pessoais e informações relevantes, como "possui doença crônica", "é alérgico", "qual o tipo sanguíneo". A vigésima sexta paciente estranha o questionário.

— Vão retaliar a minha gengiva?



*



O parque é povoado de galinhas, patos, gatos e outros bichos. Um praticante de corrida pisa num pintinho e continua correndo, nem repara no acontecido, está respondendo uma mensagem no celular. Machucado, o bichinho agoniza no meio fio. Um transeunte visualiza a cena e se dirige à faxineira, funcionária do parque.

— Não vê que meu filho está chorando?



*



Na fábrica os operários do turno da manhã chegam às seis horas. O trabalho não tem início, meio e fim porque é uma produção contínua, vinte e quatro horas por dia, há somente a troca de posto. Os operários têm direito a duas idas ao banheiro, trinta minutos para o almoço e quinze para o lanche. O chefe do gerente observa do vidro de sua sala. 

— A 42 está com as calças molhadas?



*



Dentro do ônibus lotado o clima é abafado e sufocante. As janelas estão fechadas por causa do ar condicionado, que não funciona. Na próxima parada entram quinze pessoas, lotando o que já está entupido. Dentre elas uma senhora de 70 anos. O ônibus segue e a senhora se desequilibra, caindo em cima do passageiro sentado. 

— Cuidado! Vai esmagar os meus ovos.



*



Na pandemia ninguém pode sair de casa, somente para comprar comida. O vizinho insiste em receber amigos. Todos sobem o elevador juntos, sem máscaras, e entram no apartamento. Começa a tocar a música e a conversa, após um tempo, sobe de tom. A vizinha pega uma faca e toca a campainha.

— Obrigada, veio cortar o bolo?

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Manoela Cracel (São Paulo/SP, 1975). Formada em Direito, tem a literatura e o cinema como paixões. Escreve poemas e contos. Teve o poema "Panaceia" publicado na Revista Mirada, no projeto Teus olhos rímel com poesia, e o conto "A Vida Tem Dessas Coisas ou a Vida Com Essa Coisa" publicado na antologia Contos da Quarentena – Finalistas do Concurso da TV 247, Editora Kotter, 2021.