A terra em pandemia, livro-poema de Aleilton Fonseca publicado pela Editora Mondrongo no final de 2020, coloca em debate a pandemia causada pelo novo coronavírus. 

Outras obras — como Pandemônio, de Edson Cruz; Impressões sobre a pandemia, de Andreia Donadon e Genocídio, de Fernando Drummond — também se propõem a refletir sobre o fenômeno pandêmico e sobre seus reflexos políticos, sociais e sanitários. Eu mesmo reuni os versos que produzi neste período sob o título Poemia — poemas sob efeito da pandemia! e enviei à Caravana Grupo Editorial. 

Mas a nossa atenção vai para A terra em pandemia por uma série de razões. Primeira, porque a obra dialoga diretamente com "A terra desolada", de T. S. Eliot; segunda, porque mantém uma relação de intertextualidade, óbvia ou latente, com grandes nomes da arte, sobretudo da poesia, em todos os tempos; por fim, porque o poeta se arma da sensibilidade para acompanhar a via-crúcis das vítimas da Covid-19 e, ao mesmo tempo, do verbo para denunciar o vírus terrível e expor os aliados do negacionismo científico. 

As pretensões de Aleilton Fonseca são plausíveis na medida em que são cumpridas à risca. Até o artifício de citar fragmentos de clássicos, ipsis litteris, utilizado por Eliot na obra-prima do modernismo norte-americano (e inglês) foi mantido pelo poeta baiano. O épico de 1922 começa assim: "April is the cruelest month". Já o épico de 2020: "Abril e maio foram os mais cruéis dos meses". Praticamente a mesma coisa, mutatis mutandis. Lembrando que, se por um lado, tal artifício foi malvisto pela crítica em 1922; por outro, teve a aceitação espontânea do público que leu e aprovou a obra — ainda que ela continue não sendo de compreensão fácil. 

A emulação formal se estende aos cinco cantos, cunhados em versos livres, sem rimas nem métricas, inscritos ao sabor do ritmo e da eufonia, como em Eliot e em Virgílio, autor do clássico Eneida, no qual a questão rítmica — fruto da combinação de pés — assume relevância capital. 

Tanto em A terra em pandemia quanto em "A terra desolada", as ações se apresentam ao longo dos cinco cantos de maneira autônoma e episódica, mas mantendo uma unidade temática e semântica. Enfim, o leitor se vê diante de um mosaico de imagens que retrata não apenas o sofrimento e a morte, mas também a esperança em dias melhores, tendo como pano de fundo a 1ª Grande Guerra (pós-guerra) e a pandemia do coronavírus, numa e noutra obra, respectivamente. 

A questão da intertextualidade — que é necessária tendo em vista as intenções do autor, mas que, à primeira leitura, chega a soar exagerada e forçada — acaba por integrar-se à constituição da obra. E, convenhamos, esse diálogo direto e/ou indireto mantido por Aleilton com tantos nomes ilustres da tradição artística internacional — como Dante, Shakespeare, Baudelaire, Pessoa e da tradição nacional — como Gregório de Matos, Castro Alves, Drummond, Gullar é muito bem-vindo. A mim me fez muito bem. A propósito, vibrei ao encontrar o versinho pessoano: "Tudo vale a pena quando a alma não é pequena" (levemente adaptado). 

Esse diálogo se estende também, tanto em Eliot como em Aleilton, às múltiplas referências culturais, mitológicas, filosóficas e semióticas. E dialogar com a tradição, antes de qualquer coisa, constitui indício de maturidade estilística ou — por que não? — vaidade intelectual. Mas, num caso ou noutro, tudo vai depender de como isso será processado por cada artista e, sobretudo, como se dará a recepção do leitor. E o tempo, esse compositor de reputações, cuidará do restante. 

A questão da crítica social e política em A terra em pandemia se apresenta mais que um epifenômeno, senão como uma das razões de ser da obra, na medida em que narra o surgimento do vírus letal na China; acompanha sua proliferação pelos outros países; primeiros contaminados e primeiras baixas; assiste à decretação da pandemia lá e cá. Embora a narrativa se refira ao ano de 2020 e, portanto, à primeira onda da Covid-19, ela se dá de maneira humanizadora e atemporal. Firmar-se-á como registro de uma época e de uma tragédia, mas sobretudo como um texto criativo e simbólico, capaz de transcender os limites da contingência e fragilidade a que estamos sujeitos. 

Repito o que escrevi em outra oportunidade: este livro é muito mais que um caderno de necrológios ou um testemunho de quem vivenciou (e vivencia) o caos pandêmico instalado ao sul do Equador, em que o vírus conta — inacreditavelmente — com o apoio declarado do "indigitado" Messias e seus sectários perturbados. Os quais ainda vão decretar que os poetas serão vacinados por último porque já nasceram vaticinados!

Por seus méritos estéticos inegáveis, A terra em pandemia conquistará a atenção da crítica, a empatia do público e, oxalá, a prateleira reservada às grandes obras. Quem viver verá.

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O livro: Aleilton Fonseca. A terra em pandemia.
Itabuna: Mondrongo, 2020, 110 págs., R$ 50,00
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março, 2021



Almir Zarfeg — ou simplesmente A. Zarfeg — é um poeta e jornalista baiano. Atualmente, preside a Academia Teixeirense de Letras (ATL). Ele é autor de livros envolvendo os mais diversos gêneros textuais: poemas, crônicas, contos, novela, infantojuvenil e reportagem. Participa de inúmeras instituições literárias dentro e fora do país. Iniciou-se na literatura em 1991 com o livro de poemas Água Preta, atualmente na 4ª edição. Nos 25 anos de sua trajetória literária, celebrados em 2016, ganhou a biografia De A a Z e seu nome virou verbete no Dicionário de Escritores Contemporâneos da Bahia e na Enciclopédia de Artistas Contemporâneos Lusófonos. Em 2018, recebeu o "Primeiro Prêmio Absoluto" pela obra poética inédita A Nuvem, concedido pela Accademia Internazionale Il Convivio. Assim Zarfeg se define no poema "Origem": "Não tenho dívidas,/ tenho divisa:/nunca ser rei,/mas rio".


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