Dá desfecho à chamada Trilogia do corpo, iniciada em 2014 e composta das obras A puta (2014) e O enterro do lobo branco (2017), A casa das aranhas (2019), de Márcia Barbieri, obra de difícil classificação, distante dos moldes tradicionais do romance.

O escopo da obra, em seu apego quase pasoliniano pela carne, pelo sexo, parece ser o de analisar o ser humano contemporâneo, em plena modernidade líquida, em suas neuras, suas taras e vícios imersos numa degradação moral, que não conhece lenitivos. Nada nesse mundo parece atenuar o desajuste do homem com a realidade, seja o outro (concebido no máximo como um objeto de prazer, no mais, e ainda mera distração ao "tédio da existência", seja até mesmo a arte, a literatura não promovendo qualquer iluminação entusiástica nas asas de um belo estilo.

Tampouco o alento, dentro desse universo ficcional, parece residir na metafísica, na crença espiritual, por mais que um dos personagens busque recorrentemente alcançar o Nirvana à base de constante meditação, sendo amiúde interrompido pelos outros, não se despojando, além disso de suas considerações preconceituosas a respeito de classes sociais e suas diferenças:


"Tudo bem, Estevão, se acha que isso pode ajudar, faça como preferir, não estou com cabeça para pensar em coisas mesquinhas. Estou em meio a algo muito maior, você sente a força se expandindo ao redor do meu corpo (...) Claro que não sente, como poderia? Você ainda é um ser involuído, tudo bem".


Enfim, esse olhar para o individual, para o íntimo, parece tomar o primeiro plano na obra, tornando-se sua quinta-essência. Não à toa, os capítulos não se subordinam à condução de um único narrador. Pelo contrário, cada qual assume o perspectivismo de um determinado personagem (o marido, a esposa — donos da pensão que é o palco da história — o criado Estevão, a "Mudinha" etc. ), e assume um formato análogo ao solilóquio, momento em que tais partícipes do drama não apenas impõem a plena manifestação de seu interior, como também trazem à tona sua participação do drama de suas existências.

Contudo, em termos formais, há menos dramaticidade que introspecção na obra. Não há um grande acontecimento em torno do qual A casa das aranhas se desenvolve: os abusos sexuais, os de diferença de classe, as taras, a amargura existencial etc., nenhum desses elementos pode reivindicar o protagonismo na história, este vindo a ser o próprio universo íntimo dos personagens e suas considerações enviesadas quantos aos fatos supracitados.

Inclusive, formalmente, a própria obra não favoreceria uma dramaticidade romanesca linear: o livro apresenta quatro sugestões de leitura, com disposições distintas de capítulo, numa espécie de estrutura paradigmática onde as partes necessitam de relativo autonomia. A autora aqui paga tributo ao Cortázar de O jogo da amarelinha.

Ainda no campo formal, mas também no conteúdo, antevê-se ecos do Dostoiévski de Memórias do subterrâneo (ou Notas do subsolo, a depender da tradução); até certo ponto, mesmo de Um copo de cólera, do nosso Raduan Nassar, nas relações ambíguas entre sexo e embate ideológico entre os parceiros. Sobretudo o sexo é uma obsessão, uma espécie de droga alienante ao ser que não vislumbra qualquer sentido na existência.

Os homens então, reduzidos a animais, respondem com prontidão aos apelos físicos, ao passo que os animais (no caso, um cão) se antropomorfizam, no delírio disparatado do capítulo "Um homem sem cabeça", sem que, no entanto, se distinga onde se demarcam as diferenças.

Nos tempos atuais, nada mais atual.



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O livro: Márcia Barbieri. A casa das aranhas.
São Paulo: Reformatório, 2019, 216 págs., R$ 40,00
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junho, 2021




Clayton de Souza é escritor, autor dos livros Contos Juvenistas (Patuá, 2013) e Versos de Imprecação Contra o Mundo (Penalux, 2018) em colaboração com o poeta Wítalo Lopes Moreira. Colaborador do Jornal Rascunho. Reside em São Paulo.

 

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