É muito interessante caminhar num setting de filmagem, observando a urdidura toda dos cenários e os espaços e tempos no entra-e-sai de cada personagem e depois curtir o resultado na tela em sua coesão, sobretudo quando você conhece a história, o roteiro e até se enxerga em algum personagem.

A arte sempre tem isso, um ocultamento mágico de suas condições de produção de tal modo que o apreciador precisa dar tratos à bola para imaginar ao seu modo os detalhes da produção. Claro que cada apreciador traz a sua experiência ao processo, o que torna alguns capazes de curtir o prazer estético ao enxergar parte dos bastidores e supor ali todo o trabalho do artista com suas influências e recriações. Outros se contentam com a fruição da história e ali ficam.

Entrei na urdidura de A ponte no nevoeiro como uma memória impregnada de secos "verdores" interioranos e já de cara comecei a ver dor. A tristeza de uma cidade sem graça, sem árvores e atarracada em sua mesmice cotidiana já me deu certo torpor — pois eu conheço bem essa impregnação socio-climática, que parece embalar (nos dois sentidos) nosso jeito de ser, de nos dar limites tanto geográficos quanto culturais e, claro,  insuflar à decadência e ao alcoolismo dos poucos candidatos a intelectuais, escritores, políticos de esquerda, que vão povoando a noite em seus bares e lanchonetes "curvas-de-rio" — como dizíamos na nossa cidade, onde só param "tranqueiras".

O bar é um palco por onde desfilam os desajustados, os amores homossexuais expostos à galhofa, os travestis, os doidos e bêbados que sempre têm suas singularidades cômicas capazes de comover e até mesmo de enredar cumplicidades com os intelectuais que, de vez em quando, conseguem levantar o periscópio e perceber o torpor e a indolência da rotina que os envolve. E é a partir desse periscópio posto por Bruno e Siqueira que a visão ganha alguma amplitude e passa a ensejar reações.

Enfim, para apreciar e avaliar um livro assim, que de alguma maneira me desnuda um tanto, tenho que me supor um outro leitor, alguém menos ex-verdorense do que eu, que enxergue a urdidura, não como memória própria, mas como algo mais abstrato, mais universal, mais analítico. Fiz a experiência, numa segunda leitura tentei me desatarraxar do verde-seco, escapar pela ponte, ainda que sob intenso nevoeiro. O que vi?!

Vi que se trata de um romance muito bem escrito, uma trama envolvente, construída a partir das vicissitudes de uma dupla de amigos (Bruno e Siqueira) a que se agrega também um terceiro, Otávio. As histórias de cada um dão conta de revelar detalhes dessas subjetividades, que apesar de pujantes, pois até são dotados de potência desveladora (sabem o que rola na cidade), veem-se tolhidos, cerceados até em suas aventuras amorosas.

As reflexões de que são capazes são boas, certeiras até, mas, em termos de repercussão, redundam-se inócuas diante da modelação social que um patriarcado rural mantém sob rígido controle, apesar dos brilhos de certa modernidade com seus falsos lampejos de otimismo. A pequena cidade reproduz o "Ame-o ou Deixe-o" da Ditadura, a polaridade não suporta sequer um suposto líder adventício com fumos de alguma intelectualidade (Donato Rocha), que supostamente seria capaz de criar uma terceira via na polarização entre as duas famílias poderosas, mas que também sucumbe e, com ele, dançam as poucas esperanças que dão a Siqueira, Bruno e outros que buscam espaços para seus escritos e ideias. Entre o "Ame-o ou deixe-o" existe também a condição de não amar e não deixar, mas sobreviver sob as batutas ignorantes dos poderosos — afinal, um escritor, intelectual, de repente pode ter alguma serventia: uma biografia, o realismo de um retrato realçando o poder de um bigode, um artigo laudatório, desde que se submetam em troca de um salarinho qualquer.

Comove essa solidariedade entre os três personagens, sobretudo nos capítulos finais quando um deles, Bruno, toma a sua decisão crucial. Podemos dizer também que o livro traz a amizade e a solidariedade como traços de uma certa subversão diante da mesquinharia geral que predomina nesse novo Oeste.

Para os leitores mais apressados desse nosso tempo de lampejos quase sem memórias que nossas redes sociais propõem, o livro é generoso. Seus capítulos são curtos e com muitos ganchos para que a trama, que não é simples, possa ser recuperada e sua fabulação mantida na memória leitora. Talvez um pouco de paciência (todo bom livro exige isso!) nos quatro ou cinco capítulos iniciais. A partir daí a fluência se faz, o verdor resplandece calorosamente na imaginação do leitor. 

E o que se colhe nessas 333 páginas? Uma lição interessante sobre a formação cultural e psíquica dos nossos interiores (nos dois sentidos!), tanto dos que amam, ficam e continuam exaltando os verdores todos, como dos que têm pelo menos a motivação de uma travessia, uma ponte, como Bruno. E, claro, sempre haverá Siqueiras e Otávios, que não têm alternativa ou força para novas aventuras, que ficam, mas contrariados, engolindo sobejos e cachaças para o resto da vida. Outro traço interessante é que a telemaquia (de Telêmaco, filho de Ulisses, que passa boa parte de sua juventude procurando o pai) de Bruno com sua foto no bolso pode ser travessia e salvação. Existe a ponte, mesmo sob nevoeiro. Telêmaco ao sair à procura do pai traça sua própria Odisseia, pra além das pontes e nevoeiros. 

Um livro corajoso! Para leitores que gostam de desafios!


___________________

O livro: Chico Lopes. A ponte no nevoeiro.
São Paulo: Laranja Original, 2021, 336 págs., R$ 55,00
Clique aqui para comprar.
___________________


setembro, 2021



Claudemir Belintane é educador, residente em São Francisco Xavier/SP. Autor de Toada de um educador quase caipira (Polo Books).