uma parte onde

uma parte faca


estamos separados

quero contar minha história através do machado. Por entre o

CÓRTEX


do meu

teu

um porco revestido de rosas flutua perto de nós


barco


uma parte há

onde sempre esteve

onde sempre faca


[…]


estamos

tenho no bolso um pedaço da mão

tenho na mão um pedaço (p. 10)



O livro de Paulo Guicheney, Tempo de atirar pedras e dançar (2021), começa com essas linhas na página dez, o verso da nona página. Um livro que começa virado para dentro e convidando a esperar, equivocando dentro e fora. Começa evidenciando a cisão nos dois primeiros versos que o terceiro constata ("uma parte onde / uma parte faca"). Depois disso é que esse eu se pronuncia sobre sua intenção e define seu método: "contar sua história através do machado". O corte está posto desde o primeiro gesto, desde a primeira quebra e a primeira repetição da palavra "parte" que será a reiteração mais marcante do poema. Córtex, em caixa alta, complementa o método e localiza as reminiscências que afloram no gesto da escrita ("tenho no bolso um pedaço da mão / tenho na mão um pedaço"). O que é do eu e o que é do outro começa se a se imiscuir nessa partição dos versos: "do meu /do teu" e a imagem de um "porco revestido de rosas" confere materialidade a esse corpo que se dispõe a despir-se diante do leitor re-vestindo-se com palavras.

Em nosso imaginário popular, há um nome ("os nomes sempre os nomes", p. 13) para quem atira pedras, louco. Sabemos, porém, que o gesto não se restringe a esse conjunto de proscritos. Pode ser encampado por quem, julgando-se em posse do juízo e movido pelo ímpeto, eventualmente se descontrola. Poderíamos questionar essa divisão estanque entre agressividade e desvario perguntando até que ponto tudo isso pode ser assim tão definido entre esses dois polos. O poeta sendo aquele que enlouquece a língua fazendo com que algo aconteça a ela é, por excelência, um atirador de pedras que dá a ver os estilhaços como um maço de rosas. Neste livro, creio podermos falar do eu como: 1) aquele que parte, que se lança, erra, vai-se com a língua; 2) aquele que faz parte, que corta, segmenta, descarna os sentidos; 3) ao mesmo tempo, aquele que os reúne na medida em que a separação faz supor uma anterioridade íntegra, onde a falta não existia; 4) aquele que sustenta a falta e abre as pétalas polissêmicas e com um sopro disseminador.

O livro de Paulo Guicheney apresenta a divisão, sem instalar a dicotomia ("quando sempre / uma mulher e um homem / nascem dentro de mim", p. 11). O título do poema, ao nomear um tempo, abre para estes dois gestos, atirar e dançar. A dança, sendo uma sucessão de movimentos, tanto pode se coordenar de forma a somar-se com o primeiro (de atirar pedras), quanto se opor a ele. Se soma, atirar pedras passa a fazer parte dessa dança nervosa, meio sem pé nem cabeça, para dizer com George Bataille. Por outro lado, se a dança se contrapõe ao intento agressivo de atirar, suaviza a violência e confere alguma leveza ("criança/ bonita palavra que voa", p. 11). O poema sustenta a aporia.

A dança dos versos ora encarna a loucura de um corpo que se move desorientado e entregue ao capricho das partes ("existe o delírio insano perdido psicótico absurdo frio insensato louco", p. 21), ora arrefece com o acalento melodioso das reminiscências (lembro de minha avó / dela é o nome que uso / sinto falta de minha avó / minha avó nunca incendiou ninguém", p. 26). A forma do poema, suas repetições e suas quebras, vão nos ensinando esse ritmo. O fio da faca dita o ritmo. A cesura instrui a leitura do poema, a exemplo de uma direção coreográfica, ou de uma partitura musical em que os versos, ora aparecem decepados na sintaxe, ora semanticamente repetitivos, e ora encaixados na página como dois blocos de palavras, a exemplo dos veios que escorrem entre as margens da página (p. 38-41).

Definitivamente "o poema não é uma montanha" (p. 24).  Não se trata de alto relevo, não é o resultado de um acúmulo de histórias que se encadeiam para fazer um todo monolítico, a montanha da autobiografia. Apesar desse eu haver declarado a intenção de contar sua história, a forma está mais para uma colagem, cujas partes podem ser vistas em um plano. Uma colagem pode sobrepor fragmentos, mas é antes uma justaposição, uma posição justa das partes. Uma colagem é plana como a geografia dos bairros da cidade onde "não há nada novo" (p. 34), e de onde esse eu, sente, deveria ter saído:


sou esmagado pela sensação de que deveria ter ido embora

quando novo

quando cão

nunca fui a lugar algum

meus pés congelaram (p. 33)


A colagem, esse recurso estético e plástico, não narra, nem concatena os acontecimentos biográficos, ela dá a ver a fratura no trânsito homeostático dos elementos e, por vezes, no indiscernimento mesmo entre sujeito e mundo. Algo semelhante ao que nos remetem as ilustrações de Fabiana Queiroga a partir de sua leitura do poema.

Escaneamos o corpo seccionado: "rosto, rins, fígado" (p.18), "braço, dedos, nariz, cicatrizes" (p. 21). Imagens específicas repetem e fazem dançar o corpo despedaçado que o poema reúne como pode ("uma parte parte", p. 12). O porco, o gato, a rosa, a pedra, a montanha sobressaem dos reinos animal, vegetal e mineral, que organizam o mundo do ponto de vista humano, a despeito desse corpo promíscuo e recíproco ("tenho um porco na espinha", p. 12). Esse corpo feito de partes que se juntam e separam, a cada tempo uma forma distinta, como costumam perfomar na dança os corpos que formam um corpo de baile. É assim, pelo movimento, que o estranho é tomado por familiar no esforço de encontrar um meio para vociferar o grito.

O tempo é rasgo aberto com lâminas, seja de "faca" (cortando em todo o poema), "tesoura" (p. 21), "machado" (p. 10), "arame farpado" (p. 21). Constatamos diferentes texturas, tempos distintos. Há o passado da infância com lembranças do núcleo familiar ("da catástrofe criança que gritava pelo pai trancado em um carro a / veia da garganta túmida clamando corte berrando pai mãe chão e fogo", p. 15); o fim perscrutado nas horas do presente que constata e testemunha ("Nada podemos. Na rede do ontem. // [...] // meu relógio parou no dia 30 de dezembro / é o caminho natural, dizem / em determinado momento tudo desaparecerá", p. 15); o espaço, seja o da cidade que habita ("no centro / do centro / do / buraco", p. 14), ou das paisagens visitadas, afeta o corpo (vaza-o, soterra, faz pedaços):


K2
Kanchenjunga
Nanga Parbat
Annapurna e os mortos
vestidos de branco ausência frio
Vinson
todo silêncio de silêncios bichos coisas
Matterhorn e as pedras que descem avalanches dilaceram
Mont Blanc de nome civilizado podre centro do mundo civilizado
arrebentou tantos ceifou quebrou
Eiger
parede que morde (p. 24)

Antes de tudo, o corte, a barra da linguagem que aparta e aliena o sujeito do todo que ele nunca foi. Dividido, resta-lhe o nome, sempre impreciso, servindo como um remédio amargo de que o sujeito pode se servir ("os nomes sempre os nomes", p. 13). Diante do limite, da impropriedade do nome para dizer a singularidade, o recurso plástico da colagem se apresenta como forma viável.

Entramos no poema de Guicheney pelos cepos abertos com as pedras atiradas, pelo medo de amar depois de tanta violência aparada e infligida, pela irregularidade dos tempos, das matérias e das formas que dão a ver a variedade desse eu que enuncia, e desse corpo imundo, uma ferida. Georges Bataille diz que não há ser sem fissura, o que se pode é ir da fissura sofrida, que é degradação, à glória da fissura amada. Amar a fissura tem parte com entender-se despedaçado e faltante ("sempre uma parte / falta", p. 28), ("estamos separados", p. 32) e tem parte com haver-se com isso. Esse eu não se furta de dizer sobre seu empenho com o trabalho analítico, a análise que dura e lhe permite dizer que:


uma parte nunca parte


todo um tempo de análise

doze ou treze ou setecentos

anos falando (p. 13)


A despeito do que é estranho e não se separa nunca, a falação de longo prazo parece apaziguar e trazer alguma satisfação que também permite afirmar:


após tudo, amo

em alguma parte estranha do corpo

toda parte do corpo é estranha

amo (p. 20)


Para além da coragem de olhar a ferida e admitir o potencial para ferir, há esse saber-fazer com as pedras e com as pétalas na dança equívoca dos nomes. Para além da história narrada, uma forma que finta a insuficiência da escrita ("triste é quando sulcar / garatujas / no papel-corpo torna-se a única coisa", p. 33) naquilo que ela tem de recurso e de limite.



Goiânia, 17 de julho de 2021.


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O livro: Paulo Guicheney. Tempo de atirar pedras e dançar.
Goiânia: Martelo Casa Editorial, 2021, 48 págs., R$ 52,00
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dezembro, 2021



Fernanda Marra (Goiânia, 1981). É mestre em Letras e Linguística (UFG) e doutora em Teoria da literatura (UnB). Seu primeiro livro de poemas, Voo livre, foi lançado em 1996. Tem poemas em revistas eletrônicas, como Escamandro e Esmira, entre outras. Publicou Taipografia (Martelo Casa Editorial, 2019).

 

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