Finalmente chega ao Brasil o Divã Ocidento-Oriental, de Goethe,
etapa basilar da concepção artística do mestre alemão



O leitor de Goethe no Brasil tem tido motivos para comemorar. Do prelo de algumas editoras, como a Unesp, vêm saído obras belamente trabalhadas do grande gênio alemão (ou sobre ele) que há muito tempo uma nova geração apenas teve conhecimento através de menções; obras menos representativas de sua trajetória, mas importantíssimas, que nem seque ganharam edição integral ou, quando muito, ganharam e estão há anos fora de catálogo, tais como Poesia e Verdade, Conversações com Goethe nos últimos anos de vida, Viagem à Itália etc.

Acrescenta-se agora a esse belo conjunto o famigerado Divã Ocidento-Oriental, livro de poemas/ensaio estético-histórico-cultural que marca não só mais um passo lírico na carreira do escritor alemão (mais conhecido por sua produção dramática e em prosa), mas também uma empreitada representativa dentro da noção de Weltliteratur que idealizou, e que contempla as produções literárias de várias nações, abraçando-as fraternalmente numa valorização profunda.

Essa esmerada edição da Estação Liberdade cobre uma lacuna histórica, visto que é a primeira realmente integral, contemplando até a parte em prosa, geralmente tida como dispensável na maioria das edições estrangeiras. Um atrativo a mais é que ela é bilíngue (a parte poética), possuindo evidente interesse acadêmico. A tradução foi levada a cabo por Daniel Martineschen, doutor em alemão e tradução pela UFPR, professor de língua e literatura alemãs na UFSC. Assina também o posfácio da edição.

O europeu vai ao oriente

Em inícios do século XIX, o interesse pela lírica oriental estava em voga na Alemanha, muito em função de alguns periódicos dedicados à publicação de traduções, das quais Goethe soube tirar proveito, e mais especificamente o importante trabalho de orientalistas de escol como Von Diez e Von Hammer. Contudo, nenhum outro fator parece tão relevante, em meio a tantos estudos e pesquisas eruditas, quanto o conhecimento da obra de Khwãja Samsu d-Din Muhammad Hãfez e Sirãzi - ou simplesmente Hafez; sua vida, sua arte e mundividência parecem ser o lustro central que norteia todo o trabalho poético realizado nas páginas do Divã.

É preciso, antes de mais nada, entender qual a postura assumida pelo artista alemão relativo à produção poética oriental. Goethe não está interessado em pastichar o patrimônio cultural de outra nação, ou servir-se dele para outro fim no qual tal patrimônio não desempenha qualquer papel.

Sem se referir a sua obra propriamente, Goethe, nas Notas que vêm depois da lírica, parece apresentar a chave para a criação desses versos:


"Devemos procurar e ver, conhecer e estimar cada poeta em sua própria língua e no contexto particular de seu tempo e seus costumes".


Tais palavras, embora aplicadas ao douto orientalista William Jones e seu trabalho, parecem categorizar bem a postura adotada na poética do Divã. Não que a obra, em seu original, tenha sido produzida no vernáculo da exótica região (afinal, o Divã é Ocidento-Oriental), porém em tudo o mais a afirmação parece se aplicar, com o objetivo claro de fomentar a leitura dessa rica tradição no moderno leitor alemão, pois que no fim das contas, não só em Jones mas também em Goethe, "doía-lhe o desprezo pela poesia oriental".

Acresce que tal preconceito não se alicerça tão somente pela cultura distinta e os traços religiosos que inevitavelmente emergem em sua produção artística. Presta também um desserviço a essa arte a leitura comparada que consiste em pô-la ao lado dos grandes monumentos greco-romanos, como se essa régua delimitasse sua validade.

A tais e outras armadilhas escapa Goethe ao se propor versificar numa tradição que não é a sua, sem se furtar a tornar manifesta sua voz poética de europeu moderno, especialmente no que tange à ironia.

Estrutura do livro

No aspecto macroestrutural, como já dito, o livro se divide em uma parte poética, que é a principal, e uma em prosa, ao final, Notas e Esclarecimentos... que exercem mais a função de ensaio crítico e histórico, essencialmente ambientando o leitor nessa rica e vasta região que é o oriente, se detendo mais na tradição persa.

Em termos de microestrutura, os poemas são divididos em doze livros de temática variada, indo desde o Livro do Cantor (a aproximação do poeta europeu ao oriente, prescrutando objetos como talismãs, sinetes e outros que incorporam a cultura e misticismo local); passando pelo Livro de Zuleica (o mais extenso e bem delineado do conjunto), chegando ao Livro do Paraíso (em suas diversas concepções: cristã, islâmica etc.).

Cada livro apresenta sua peculiaridade, e seria maçante esmiuçar ao leitor o conteúdo de todos; assim sendo, um caminho mais fecundo é partir de certos temas já apresentados até aqui, percorrendo os livros que os enfocam.

O Livro de Hafez, o segundo do conjunto, traz um eu-lírico identificado com o poeta e os sucessos de sua vida:


"Nas tuas rimas espero me achar,

Repetir-te vai ser, sim, muito bom (...)

Veio, a mim, de ti eterna chama

Que um peito teuto renova e inflama"


Percebe-se acima a postura referencial; para além dela, há a dialógica: o poeta alemão fala com Hafez; é, de certa forma, o leitor ocidental abordando e conhecendo o poeta persa:


"Poeta

Muhammad Samsu d-Din, então,

Porque o teu povo, o honrado,

Chamou-te Hafez?


Hafez

Horando,

Eu respondo à tua questão.

Porque, com feliz memória, 

Do Corão sagrada história

Sem mudança eu preservo (...)"


É interessante como os poemas (e não só nesse livro) se relacionam: no poema "Fátua", as figuras da "peçonha e teriaga" são evocadas para referir-se ao que está "fora dos limites da lei" e "às verdades indeléveis", respectivamente, na poesia de Hafez (simbolicamente, o que é censurável e digno de elogio dentro da legalidade da tradição cultural/religiosa); no poema a seguir, "O alemão agradece", as imagens retornam, mas com sua influência atenuada ("Aquele não mata, este não cura"); já no próximo poema, também intitulado "Fátua", não há mais atenuação: o "grão-juiz" condena categoricamente a natureza de tais poemas, utilizando um argumento dogmático:


"(...)Ele/Alá, deu o dom a todo vate

Use-o mal no andar de seus pecados,

Com Deus passará por maus bocados"


Embora essa postura passe, à sensibilidade moderna, por fundamentalista, é preciso que o leitor se lembre a todo momento da recomendação de Jones no começo deste texto; além do mais, há muita sabedoria brotando dessa tradição rica e é no Livro dos Provérbios, em poemetos leves, que ela desfila sua exuberância:


"Nesta noite e neste dia,

Nada queiras

Que já ontem não havia"


~~~~~


"Que algo seja simples,

Sabe quem achou, e o fez simples"


~~~~~~


"O mar vai e vem,

A terra não o retém"


~~~~~~~


"Não deixes em nenhum instante

Te levarem à incoerência;

Quando lutam com ignorantes

Sábios caem na ignorância"


Percebe-se como a serena sabedoria (em especial do último provérbio) bem assenta aos tempos contemporâneos. Há universalidade em seu conteúdo, e simultaneamente traduz o colorido local de sua origem.

A sabedoria, junto à outra iguaria bem apreciada em terras persas, a arte, promove o compartilhamento, a contemplação mútua entre o artífice e o apreciador. Esse é, por exemplo, o tema do Livro da Taverna, todo estruturado no diálogo entre Hatem (outra persona poética da obra) e um jovem que lhe serve. Mas sobretudo vigora o louvor ao vinho, à libação.

Antes, porém, tem-se o Livro de Zuleica, que assume a mesma forma dialógica (embora com suas peculiaridades); é quase um Cântico dos Cânticos persa implicando o mesmo Hatem e Zuleica, em versos que se formalizam no gênero dramático (cuja ausência na tradição persa é apontada nas Notas por Goethe):


"Zuleica

Tão logo te abraço de novo,

E com beijo e cantos louvo,

Estás quieto, ensimesmado;

Que te atou, vexou, prostrado?


Hatem

Ai, Zuleica, devo dizer?

Não quero louvar, só me doer!"


É o livro mais completo do conjunto, mas é interessante notar, nesse particular, o contraste com outros, como o que o antecede, o brevíssimo mas potente Livro de Timur (Tamerlão), composto por dois poemas, o principal deles narrando e dramatizando o entrevero entre o famigerado tirano e uma força da natureza, igualmente titânica, mas que o vence, fazendo lembrar a lição que o "Ozmandias" shelleiano nos ensina: nem uma tirania humana é páreo para a natureza e a força do tempo: 


"Sim, por Deus! do frio de morte,

Ó grisalho, não te ampara

Nem fogão ou ampla brasa,

Nem a chama do Dezembro"


A divindade sempre está presente, ainda que de forma implícita, seja nas alegorias exuberantes do Livro das Parábolas, seja no livro que dá desfecho ao conjunto, o Livro do Paraíso, em que o leitor entra em contato com outra característica marcante do Divã: a coexistência pacífica entre diversas crenças da matriz oriental, e oriental-ocidental. Goethe, sem ser adepto de nenhuma dessas crenças, passeia por elas de forma desenvolta e respeitosa, sem se furtar de, ironicamente, alfinetar a conduta de alguns de seus praticantes.

Tal postura é observável também nas Notas e Explicações..., a parte em prosa que dá fim à obra. Nela, Goethe mergulha extensamente na tradição islâmica, hebreia, cristã e, principalmente, persa com uma erudição que não dispensa a clareza. Discorre brevemente sobre a natureza dos livros do Divã e também mapeia os orientalistas europeus que, como ele, amaram aquela cultura diversificada, e na qual ele mesmo buscou iluminação.

Não é difícil, porém, entender por que essa parte foi negligenciada na maioria das traduções impressas: Goethe não pontua as menções a nomes, lugares ou elementos específicos presentes em todos os poemas. Nem deveria, cabendo mais a essa edição investir em notas de rodapé (o que não é o caso, único senão da edição). Felizmente a tradução e a própria essência singela dos versos garantem uma leitura fluida.

Vertendo os versos

Sempre levando em consideração a impossibilidade de uma tradução plena de um texto literário (e quando se trata de poesia, a dificuldade é multiplicada), Daniel Martineschen leva a bom termo um desafio hercúleo. Em consonância com a opção do autor por um verso melodiosamente mais acessível ao leitor alemão (tetrâmetro trocaico e o hexassílabo), Daniel opta, em grande parte dos versos, pela redondilha maior, ocasionalmente transitando pela menor, o que soa mais familiar ao brasileiro sem se afastar muito do original; no que é possível, mantém o esquema de rimas, parelhas, em sua maioria.

Os versos são compactos, o que, a despeito da acessibilidade, exigem enorme concentração na leitura; certamente a recorrência de símiles e mudanças bruscas de tópico entre estrofes acentuam o desafio:


"Pensam que em força ou amor 

Devemos nos ajuntar;

O dia de sol se anuviou

Minha sombra parece queimar.


Hafez e Ulrich Hutten, sim,

Repeliram inimigos:

Monge cristão e muslim.

Já os meus se unem aos amigos"


Bem considerando todos os pontos, a edição do Divã pela Estação Liberdade é dessas pérolas exóticas que, aportando num país, enriquece seu patrimônio cultural no âmbito das traduções. Seu interesse vai além do puramente acadêmico, sendo basilar aos amantes da boa poesia.



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O livro: Johann Wolfgang Goethe. Divã ocidento-oriental.
São Paulo: Estação Liberdade, 2020, 448 págs., R$ 72,00
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março, 2021




Clayton de Souza é escritor, autor dos livros Contos Juvenistas (Patuá, 2013) e Versos de Imprecação Contra o Mundo (Penalux, 2018) em colaboração com o poeta Wítalo Lopes Moreira. Colaborador do Jornal Rascunho. Reside em São Paulo.

 

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