Entre o sono inquieto (fantasmas adulados) e a vigília mais lúcida (assombros renovados), uma prodigalidade se encena e fertiliza o mundo: a voz poética de Carla Andrade, expandida e amadurecida em seu quinto livro: Ando caindo cada vez mais leve (Penalux, 2021).  E assim como o pantaneiro Manoel de Barros se apresentou ao mundo como o fazedor de amanheceres e mestre dos aprendimentos e memórias inventadas, a escritora mineira-brasiliense nos chega como uma fazedora de imagens, tamanha a perícia em nevralgicamente escavar do real sentidos outros em seu brincante (e febril) exercício de montar-desmontar-remontar simbólica e picturalmente seres e coisas, com o cuidado cirúrgico, porém, de contornar, polir, reverenciar o mistério, essa trêmula e indevassável raiz que a tudo precede e sustém.

Entre "libélulas bicolores", "sádicas mariposas" e por meio de "búfalos vidrados" gravados em sua retina, a condição que ancora o mistério poético — a de que toda poesia é essencialmente imagem, condão encantatório por excelência — intensifica-se ainda mais em versos que desbordam a deslizante matriz do desejo, daquilo que escapa na medida em que é capturado. Pois a indagação de Marilena Chauí — "Por que o objeto do desejo se confunde com a embriaguez do próprio desejo? — ressoa nos versos de Carla Andrade e em seu "êxtase de sinapses". Ao rastrearmos etimologicamente a origem das palavras, tanto desejo (desidero, sidera), que advém do campo semântico das estrelas e constelações, quanto êxtase (ecstase, exstase), suscitando o movimento de "sair, partir, desprender-se de si", configuram o leitmotiv de sua poética. E o que são as águas-vivas que atravessam os seus poemas senão o duplo movimento de empuxo e expulsão, do que captura pela beleza, mas em fogo se defende ferindo, o que chega como ardente chamamento, perigo irresistível — e iminente —, mas não passível de ser retido, constituindo, assim, uma potente metáfora de suas perdas e predileções, lembrando aqui os Cantares de Hilda Hilst.

Em seu imaginário, então, evolam-se igualmente a derrelição hilstiana — diz a Obscena Senhora D: "Derrelição quer dizer desamparo, abandono", "desde sempre a alma em vaziez — e a lucidez aguda de que "o garrote" dos pensamentos, acompanhado de seus "calos sem lógica", não pode atrapalhar "a beleza do infinito". E como assinala: "a falta de protocolo dos sentidos/ eu assino com incenso".

É nesse perturbado e instável entre margens, no qual as pulsões primeiras e larvares, que emergem como fantasia e desejo, debatem-se com os contingenciais e opressivos esquadrinhamentos sociais, que se ergue a força inapreensível do feminino: "só a mulher não entende o que não foi esculpido/ e a vontade de mergulhar no vácuo de um abraço no cio".

No movediço leito dos dísticos desejo-interdição, segredo-degredo, enlevo-desalento, Carla Andrade não deixa de dialogar com outra poeta mineira: Adélia Prado, para a qual "foi tudo um erro, cinza/ o que se apregoou como um tesouro.// O que tinha na caixa era nada./ A alma, sim, era turva/ e ninguém via".

Ao assumir que "hoje melhor/ só devorar o barro/ Lilith de mim", Carla altivamente assume sua posição de recusa, resistência e luta, deixando o seu brado ante uma sociedade violentamente patriarcal e feminicida: "Quando um homem bate em uma mulher/ o corpo bicho dela senta/ no canto do labirinto/ do cérebro e se contorce/ com o manto de dez a quinze minotauros".

Em uma dicção enxuta, porém discursiva, como quem conta uma estória — a estória da menina que colecionava papéis de carta e fazia caretas no espelho —, a dimensão abstrata do amor, do tempo, da vida é disposta no concreto e perecível fruto que cai e apodrece: "o amor caído/ ainda faz estragos/ como o jamelão/ insistente/ no lençol branco/ quarado/ trazido/ pelos meus/ descalços.

Há de se notar ainda que os poemas de Carla Andrade estão ancorados tanto no ar rarefeito, em alturas extraordinárias, em que o humano não se faz possível, mas, sim, o sabiá que prevê tempestades, os pássaros sem ninho, quanto no submerso de si, em que a sua mulher-polvo regressa ao mar para reaprender o nado, e assim exige: "Boiar deveria constar nos manuais/ de existência". 

Sob "o medo de o mundo não acabar", a poeta ritualiza a sua sanidade implodindo as balizas do real, desprendendo-se de si ao reconhecer que "antes de me desatarraxar do último átomo", irá "sacudir a árvore da vida" e "rasgar o papel vazio/ sem poesia". Em com ela somos arrastados por essas águas intransponíveis, pela claustrofobia inevitável em um eu-enclausurado que assume impotência e limitação ante o comezinho no tremor inevitável das mãos, no TOC estalando seus chicotes implacáveis. 

Em meio a apelos existenciais lançados a esmo, embora o anzol da poeta retorna vazio de respostas — e junto o aflitivo clamor dos náufragos: "Sobrou apenas um pássaro na minha mão/ e quase o sufoco de vida" — sobreleva-se o seu pedido secreto: "antes de dormir eu peço/ para o deus da poesia/ só um dia/ e ele é bom/ e me dá papel/ e inflama o dia".

Com "a inocência dos pés inquietos", mas sem chaves no bolso tampouco portas do teatro mágico, a exemplo da mulher-esfinge, com sua cicatriz no quadril, por fim, todas as meninas-moças-mulheres em Ando caindo cada vez mais leve são compostas-decompostas-recompostas com uma única, estranha e absurda mulher-moça-menina, talvez a própria poeta a bordejar o impossível do tempo, da vida, da morte, a montar e remontar, em um continuum que alterna espanto, angústia e melancolia, o seu grande ensinamento, a lição içada por sua palavra-ponte: "a ponte sou eu/ me ensinando de longe/ a ser submersa".

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O livro: Carla Andrade. Ando caindo cada vez mais leve.
Guaratinguetá/SP: Penalux, 2021, 158 págs., R$ 42,00
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dezembro, 2021



Luciana Barreto é poeta, ensaísta e professora de Literatura, com doutorado em Teoria Literária pela Universidade de Brasília (UnB). Desenvolve pesquisas nos universos de Hilda Hilst, Osman Lins, Clarice Lispector e Fernando Pessoa, participando de simpósios e congressos e com artigos relacionados em livros e periódicos acadêmicos. Atua como professora em Literaturas Brasileira e Portuguesa. Integra ainda os Grupos de Pesquisa Estudos Osmanianos: arquivo, obra, campo literário e Literatura e Cultura, ambos associados ao CNPq. Publica poemas em revistas e blogues literários, como Mallarmagens, Gueto, Ruído Manifesto, Traços e Escrita Droide, além de antologias, a exemplo de As mulheres poetas na literatura brasileira (Ed. Arribaçã). O seu livro solo de poesia — Nunca é casto o fio do poema — está em fase de editoração. Em outubro, sob sua organização, será lançada a antologia No meio do fim do mundo — 89 poetas hoje, pela Ed. Elã.