[estátua de sal no mar morto | autoria ignorada] 
 
 
 
 
 
 
 
 



RESUMO



O objetivo nucelar que aqui se persegue é o de fazer uma investigação a respeito do mito de Lot como um recurso de citação, por meio do qual tal mito se manifesta como metáfora de libertação da mulher. À vista disso, procuramos demonstrar como o mesmo mito pôde abarcar novos sentidos ao longo do tempo, mediante discursos e abordagens dessemelhantes. Para tanto, este texto aciona o conceito de "comentário", presente na obra de Michel Foucault; além disso, vale-se de outros teóricos e conceitos sobre os quais repousa o objeto de investigação aqui cotejado.


Palavras-chave: Mito de Lot. Citação. Commentaire Foucaultiano. Poesia. Feminismo.



A NAME FOR HER: the myth of Lot in modern poetry 


ABSTRACT



This paper aims to investigate the myth of Lot as a quotation resource, through which such myth manifests itself as a metaphor of women's liberation. In view of this, we seek to demonstrate how the same myth has been able to comprehend new meanings throughout time, by means of dissimilar speeches and approaches. For this, this paper brings up the concept of "commentary" that exists in Michel Foucault's work; furthermore, it makes use of other authors and concepts upon which lies the object of investigation that is approached here.


Keywords: Myth of Lot; Quotation; Foucault's commentaire; Poetry; Feminism.




INTRODUÇÃO



Neste texto, nosso propósito principal é investigar cinco poemas que citam o mito da mulher de Lot. Interessa-nos, também, observar como tal mito é relido por cinco poetas modernas, em  pelo menos três momentos históricos distintos. Com isso, observamos até que ponto se pode dizer que a releitura do mito da mulher de Lot pode ser considerada feminista. Antes de qualquer coisa, é preciso levar em conta os seguintes pontos: a) uma mulher sem nome, "mulher de Lot"; b) a noção de citação e a possibilidade de se entender a citação como algo para além do intertexto e sim do interdiscurso, tendo como ponto de partida Marjorie Perloff1 e, a partir da autora, outros teóricos que se debruçaram sobre a questão; c) uma investigação possível de acordo com o pensamento feminista. Para esses fins, escolhemos cinco autoras que lidaram com o tema "a mulher de Lot", em diferentes línguas e momentos: Anna Akhmátova (Rússia, começo do século XX: "Лотова жена"), Wisława Szymborska (Polônia, meados do século XX: "Żona Lota"), Dana Litlepage Smith (EUA, atualidade: "Lot's wife"), Anne Simpson (EUA, atualidade: "Lot's wife") e Assionara Souza (Brasil, atualidade: "A mulher de Lot").



1 ADO OU ESTER



Pela datação dos textos da Torá, primeiramente escritos em aramaico e depois em hebraico, pode-se datar com certa precisão quando o mito de Lot ocorre na escrita. Não se pode afirmar, porém, desde quando ele surge na oralidade, tampouco se ele é "nascido" no seio do povo hebreu. A questão não é pacificada e ora tende mais a uma investigação da Linguística Histórica, ora da própria História, ora ainda da marcação da tradição oral e escrita do povo judeu (BACON, 2003, p.16).


Embora a história do povo judeu remonte ao segundo milênio a. C. com a ida (ou a escravidão) ao Egito e depois à Mesopotâmia, e apesar de a datação das revelações mosaicas serem mais antigas, os primeiros textos nos sistemas de escrita aramaico e depois hebraico datam dos séculos VIII e VII a. C. somente (JEAN, 2002, p. 53-54).


Na atualidade, referimo-nos a ele como um mito camito-semita e não de outra tradição. Isso se  deve mais pelo que sobrou da documentação antiga dessa região do planeta (os textos hebraicos foram reescritos ao longo dos séculos enquanto textos de outros povos, não) do que exatamente   pela possibilidade de o mito ter migrado de um lado para outro, como se pode supor, e ter "existido" em outros lugares sem provas disso. Cada vez mais se sabe que as trocas culturais no mundo antigo foram mais firmes, extensas e presentes do que imaginávamos (BACON, 2003, p. 17-32), afinal.


Há a possibilidade de ele existir em outros lugares que não deixaram rastros arqueológicos, como ocorre com o mito do dilúvio, presente tanto na tradição judaica quanto na tradição suméria. Tal mito, o do dilúvio, diferentemente do mito de Sodoma e Gomorra, pode ser encontrado hoje em diferentes registros.


O que sabemos, com certeza, é que em Gênesis 19 surge a referência a uma mulher sem nome, apenas apresentada como "a mulher de Lot". É importante frisar isso porque, como será visto, todas as poetas optaram por esse epíteto, quer pelo uso comum ao longo de século, quer pela ironia, a qual, por sua vez, será importante na retomada do discurso.


Pela datação possível do cânone judaico e posteriormente a datação do que viria a ser o Novo Testamento, eis a fonte primária, por assim dizer, do mito. Sabe-se também que o mito de Lot, a mulher e as filhas, é idêntico ou similar na Torá e no Antigo Testamento cristão (mesmos livros, traduções minimamente desiguais, trecho curto o bastante para não permitir grandes variações de escriba para escriba, etc.), mas não aparece de modo similar no sagrado Corão. Aqui, ele surge diversas vezes, em 26:167 ou em 29:32 ou ainda em 11:78, com dramáticas divergências. Valeria lembrar que a revelação ao grande profeta só ocorre no século VII da nossa era — e que os textos considerados basilares para o Corão só aparecem no século seguinte, ou seja, 1.500 anos após as primeiras escritas na Torá (LYONS, 2011, p. 47).


De todo modo, sabe-se que a mulher de Lot continua sem nome na tradição "oficial", embora as filhas o tenham: algo que é tão importante para a história judaica ou para a dos povos árabes que o nome de cada uma delas gerou dois povos, pela tradição religiosa, frise-se, e não pela historiografia ou pela história das línguas: os moabitas e os amonitas (GÊNESIS, 19: 37-38). A  situação das filhas de Lot será mencionada na análise dos poemas.


De qualquer maneira, o "exemplar" castigo dado à mulher de Lot se propaga com discursos muito similares, quer seja no judaísmo, no cristianismo católico romano, no cristianismo ortodoxo e demais variantes posteriores, seja no Ocidente europeu, no Oriente Asiático  próximo, nas variantes cristãs dos cismas e posteriormente nas variantes cristãs do Novo Mundo: a mulher de Lot foi punida pela mão de Deus. No mundo islâmico, não. Como não cabe aqui uma investigação profunda sobre as diferenças entre a Torá (e o Velho Testamento) e o Corão, vamos partir da premissa de que o mito tomado pelas poetas é o mito judaico-cristão, que está basicamente em Gênesis 19:26: "E olhou sua mulher (de Lot) por trás dele e converteu- se num bloco de sal" (TORÁ, 1996, p. 48).


É de se pensar também na hipótese de o mito não ser circunscrito ao mundo camito-semita e mesopotâmico, nem em sua forma "bíblica", nem em outras formas específicas que descrevam   a mulher desobediente ou a cidade em chamas. Seria o caso de se pensar em outros formatos mais abrangentes, mas com um agente em comum que é "olhar para trás como uma proibição". Algo que será importante no poema de Smith, por exemplo.


Tal proibição surge tanto no universo do mito grego quanto em superstições atuais2, nos mais variados países tributários das práticas e discursos do Velho Mundo. Também não é objeto dessa investigação uma comparação entre mitos da Antiguidade, mas convém citar talvez o mais conhecido, o do universo helênico, que é a história de Orfeu: tanto no mito judaico-cristão quanto no mito grego, o "olhar para trás" é amalgamado a um castigo. A mulher de Lot transforma-se num pilar de sal; Orfeu perde para sempre Eurídice para o mundo inferior. Há diferenças, também: em nenhum lugar do Gênesis, o Xeol é citado, enquanto que, no mito grego, o Hades é fundamental para o desenvolvimento do mito, afinal Orfeu representa na mitologia grega aquele que é ligado à "expiação das faltas e dos crimes" e sua catábase está ligada ao mundo inferior (BRANDÃO, 1991, p. 196).


É interessante pensar nesses aspectos ligados ao mito antigo: o da expiação, o da culpa, o da condenação, o do "olhar para trás" como uma superstição que alcança o mundo moderno. Não   se trata, portanto, de um acaso que cinco poetas em momentos distintos e idiomas distintos tenham justamente escolhido esse tema.


A punição a essa mulher sem nome ganha contornos. Primeiramente, a obediência — ou a falta   dela — parece ser o aspecto mais próximo presente em homilias e em textos escritos, da antiga tradição judaica, passando pela Idade Média e mundo bizantino, pelo universo barroco de um Padre Vieira, até chegar a cada homilia em cada paróquia mundo afora: a mulher deve obedecer ao marido, como todo fiel deve obedecer a Deus, sendo a figura masculina marido-Deus muito presente e forte numa sociedade, ou em sociedades, dominadas pelo falocentrismo, pelo poder masculino, pela dominação heteronormativa masculina.


Na tradição rabínica haveria um agravante na desobediência para qualquer membro da família de Lot, incluindo ele mesmo: Lot (e sua família) seriam tão "pecadores" quanto qualquer morador de Sodoma e Gomorra e não teriam o direito de ver a punição de Iaveh (MELAMED, 1996, p. 47); frise-se que, no mito, quem foi punida foi uma mulher, e esposa; então, os discursos posteriores sobre a obediência recaíram sobre uma mulher e não sobre um homem (e  tal dado será importante para a discussão posterior no feminismo); mesmo o fato de as filhas de Lot terem se deitado com o pai isso é de somenos importância na tradição judaico-cristã, quer pelo fato de os incestos terem ocorrido antes da promulgação das leis basilares do judaísmo, quer pelo fato de haver um "motivo de força maior" e "ingenuidade das mulheres", na "melhor das intenções" (MELAMED, 1996, p. 48), análise que não difere muito da feita em relação aos assassinatos posteriores cometidos por mulheres que se deitaram com homens, por motivo "de  força maior", caso de Judite.


Olhar para trás na tradição judaico cristã é um problema que vai bem além da desobediência; na tradição oral e em textos sagrados para as religiões abramânicas, Lúcifer (luci = luz; fero = portar), como é de conhecimento geral pela tradição oral, é atirado de costas do céu para o baixo mundo; assim, ele é o único ser vivente que enxerga "para trás" e por isso sabe o futuro (sobre  uma leitura moderna desse mito apócrifo, ver BENJAMIN, 1994, p. 226); desse modo, o olhar para trás é uma hediondez (cf.: BRANDÃO, 2001, p. 198) no universo judaico-cristão e muito provavelmente no mundo islâmico também (convém lembrar aqui que os textos apócrifos são um problema de ordem teológica, a tradição oral outro problema e as leituras dos textos sagrados um terceiro, que derramaram tinta dos doutores da Igreja durante séculos).


Desse modo, o mito supracitado se propagou para outros territórios do dizer: hoje, no mundo todo há pilares de pedra de tamanhos variados, desde a altura de um ser humano3 até um enorme rochedo na Ilha de Tarahiki, Nova Zelândia4, que levam este nome, "Mulher de Lot").


Outra prova da constância do mito (logema) numa imensa rede discursiva mediterrânea diz respeito ao modo como o mito foi levado à arte como tema, em pinturas, iluminuras, gravuras, esculturas, do mundo romano (cf.: BRANDÃO, 2001, p.115) até o mundo contemporâneo, caso de Alsem Kiefer5, quando é a destruição que se eleva mais do que a desobediência. Muito possível que esta mulher sem nome ganhe hoje um nome e todo conjunto de sentidos que o atravessa, para, além do mito, um grito e uma ação libertária.


A abrangência do mito e o modo como atravessa outros discursos e práticas, ou ainda o modo impressionante como o mito se propaga permitindo que cada época o "leia", absorva ou interprete, catapulte-o, infle-o de novos significados, já seria motivo suficiente para uma investigação. Se Kiefer o lê como símbolo de uma destruição possível, ou se Gore Vidal publicara sua primeira obra com o enigmático título "The city and the pilar" (a personagem central vive do passado), um pouco antes dele Antonin Artaud utilizara-o como base de um pensamento nada sutil: que suas plateias se transformassem igualmente em estátuas de sal (HARRIES, 2007, p. 1). Note-se que o dramaturgo não busca no mito de Medusa a transformação que encerra a alma do sujeito no próprio corpo, e sim o mito da mulher que fora  condenada.


Se se transformou em pedra (de sal), a ela não seria possível a viagem pós-morte para o Xeol, onde esperaria o fim dos tempos. Daí se tira a gravidade da punição. De todo modo, Artaud teria pensado num momento catártico ou epifânico, algo que surge como possibilidade de leitura  nos poemas escolhidos — e o que, ao mesmo tempo, aproxima ainda mais a mulher de Lot de Orfeu, de acordo com a leitura feita pelas poetas.


O sal no universo mitológico judaico-cristão é ambíguo: ora ele é um "veneno" que "queima os olhos" (MELAMED, 1996, p. 48), ora ele é o que nutre a terra (Mateus 5: 13-16). No caso da mulher de Lot, o primeiro sentido suplanta o segundo, uma vez que a punição foi tão exemplar que atravessou séculos.


No entanto, aqui se faz uma pausa na variedade de citações e apropriações, para o debruçar-se sobre uma situação teórica no seio da Linguística e da Teoria da Literatura: como a poesia moderna incorporou o mito.


Por fim, um nome para ela. No Livro da Sabedoria, 10: 7, e em Lucas, 17:32, ela é "a mulher de Lot". No entanto, na Midrash da tradição judaica, ela é Ado. Ou Ester, outra Ester, não a mulher de Assuero. Tal nomeação não é aceita por nenhuma igreja cristã. Na tradição oral e escrita religiosa, a mulher de Lot continua sem nome. Os poemas escolhidos mostrarão que ela pode se libertar; ela, Ado.



2 A CITAÇÃO NO INTERIOR DE UMA TEORIA DA LÍNGUA



Antes da investigação sobre os poemas, algumas palavras sobre citação. Sloterdijk em "Derrida, o egípcio" lembra de um comentário irônico de Derrida: "ser prudente nas conversões e nos desvios por contextos muito diferentes dos seus6" (SLOTERDIJK, 2007, p. 34). Por idêntica razão, no curto espaço deste artigo, optou-se por um levantamento não exaustivo de tantos autores que lidaram com a fala alheia, a citação, a voz do outro, a intertextualidade e a interdiscursividade.


Muito provável que no seio da Linguística ou da Filosofia da Linguagem a situação do discurso de outrem no discurso do sujeito que fala seja, senão uma das mais controversas, uma das menos pacificadas. Há diferentes profissionais discutindo situações paralelas, por vezes divergentes e por vezes com algum ponto de contato: semanticistas, pragmáticos, profissionais da semiótica discursiva e analistas discursivos.


Vejamos o que dizem alguns autores que se debruçaram sobe o ponto: para o Michel Pêcheux leitor de Althusser e Freud, o discurso é a um só tempo uma estrutura e um acontecimento e ainda uma tensão entre descrição e interpretação, sendo o acontecimento por si só outra tensão entre o agora e a memória (PÊCHEUX, 2006, p. 19 e ss). Já para Jacques Derrida, o enunciado  [da língua] est a l'autre, venue de l'autre, la venue de l'autre (DERRIDA, 1996, p. 127), o que nos faz perguntar sobre "o que tem lugar entre o papel e a máquina?" (DERRIDA, 2004, p. 14) ou seja, entre o enunciado e quem o ouve ou o interpreta. Ou ainda entre o texto primeiro e o texto segundo, sendo este tributário daquele. Toda escrita, que é a presença do outro, é uma deformidade ou desfiguração7 (SLOTERDIJK, 2007, p. 28) e um "texto só é texto se ele se oculta ao primeiro olhar" sendo que há textos que levam séculos para terem seus véus descobertos (DERRIDA, 1997, p. 7).


Para Deleuze e Guattari, a linguagem "vai sempre de um dizer a um dizer", havendo "um rumor,  glossolalia" na língua, pois todo dizer é um discurso indireto, que carrega a voz do outro (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 13). Para os autores, a linguagem não se contenta em ir de um primeiro a um segundo, mas "de um segundo a um terceiro" (idem; p. 14).


"A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas linguísticas", diz Mikhail Bakhtin. Para o filósofo russo, a língua é um contínuo diálogo não no sentido restrito do termo, mas num sentido amplo, "isto é, não apenas a comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda comunicação, de qualquer tipo que seja" (BAKHTIN, 1979, p. 109).


Evidentemente, há outros pensadores que, como Sloterdijk encaminha, pensaram ou repensaram a questão, assim como Habermas, que faz um levantamento histórico desse ponto em particular, em "O discurso Filosófico da Modernidade", dando destaque para Michel Foucault. Neste artigo, tomaremos o conceito foucaultiano de "commentaire".


Mas que fique claro que a questão do discurso, aqui, e da citação, terá como base esses autores acima citados: nossa voz é a voz do outro, sempre; nosso discurso é a repetição do já dito; há um abismo entre o dito anteriormente e o dito agora; todo dizer é estrutura, mas fundamentalmente acontecimento; a voz não se contenta com a ponte eu-outro, pois haverá um  terceiro que atravessa todo e cada dizer.


O comentário (commentaire) para Michel Foucault é um procedimento de controle que ocorre internamente ao discurso. O que se fala carrega não apenas controles discursivos externos como controles internos, dados por forças coercitivas sociais, históricas, políticas, culturais, etc. Ele trata de três procedimentos de exclusão internos: o autor, a disciplina e o comentário, escolhendo justamente a literatura para exemplificar tal sistema de exclusão, a literatura que não se cansa de narrar, e narrar novamente e ainda mais uma vez a trajetória de Odisseu (FOUCAULT, 2001, p. 23).


No entanto, embora o comentário possa ser bastante visível na superfície textual (quando se procura, a exemplo, pela intertextualidade), ele é uma estrutura (linguística, de resto) e não um acontecimento. Em verdade, uma depende da outra, mas a análise de estruturas corre um risco, o de lançar sombra sobre o sentido, o discurso, o dizer mesmo do enunciado.


O mesmo texto — ou a mesma estrutura — narrada e narrada de quando em vez terá a cada situação uma rede e um jogo de sentidos, que envolve não apenas o autor, o texto e o interlocutor e sim todo o complexo conjunto sociocultural e histórico que faz desse texto, ainda que mais uma vez, ser possível de ser verbalizado. Haveria como que um abismo entre o texto primeiro e o texto segundo, o terceiro, o quarto e entre Akhmátova, Szymborska, Smith, Simpson e Souza — haveria apenas um apontar com o dedo para uma situação mitológica, perdida há séculos ou milênios, inalcançável. No entanto, temos delas o texto, e algo a mais, outras vozes que povoam tais textos, e a Linguística pode investigar tais vozes.


A cada vez que o mito da mulher de Lot aparece citado e relido, ele ganha uma continuidade, ao passo que novas formas do dizer, umas das grandes, senão a mais terrível, ambiguidade da língua. Foucault ainda traz outros princípios para tal investigação: a inversão (renversement), a descontinuidade (discontinuité), a especificidade (spécificité) e a exterioridade (extériorité). Ignorar o sonho de uma conquista de uma fonte "primeva"; deixar de lado a missão de encontrar  uma verdade velada no discurso; não crer que o discurso tem um jogo de significações prévias; e tomar o discurso por ele mesmo, sua aparição e sua singularidade (FOUCAULT, 2001, p. 53- 56).


Analisado o aspecto "estrutural" e histórico do mito e sua relevância como algo citado e apontado, e vista a situação teórica de onde partiu esta investigação, passa-se aos poemas "eles mesmos" no entender foucaultiano citado acima.



Notas


1O texto inicial dessa investigação partiu de PERLOFF, Marjorie. O gênio não original — poesia por outros meios no novo século. Tradução de Adriano Scandolara. Belo Horizonte: UFMG, 2013.

2Tal proibição aparece em textos eruditos (cf. BRANDÃO) e em discursos populares, como num simples jingle de propaganda de televisão (cf.: <https://www.propagandashistoricas.com.br/2013/06/banco-nacional-natal- 1985.html> Acesso em 12 de set. de 2020.

3Cf.: https://www.deadsea.com/explore/historical-sites/biblical-sites/mount-sodom-lots-wife/ Acesso em 12/09/2020.

4Cf.: <http://www.backpack-newzealand.com/maps/all/lots-wife-map-2937.php>. Acesso em 12/09/2020.

5Cf.: como na obra do artista os mitos judaicos são metáfora para o sofrimento do povo judeu:

<http://anselmkiefer2.blogspot.com/2009/11/lots-wife-1989.html> Acesso em 12/09/2020.

6A tradução para o português não é nossa. É de Evando Nascimento. Duas versões de Solterdijk foram cotejadas aqui: a versão brasileira e a argentina.

7Entstellung, no original; déformation, na tradução francesa; desfiguración, na argentina; deformação, na versão brasileira. O termo é tomado de empréstimo a Freud, para quem "a deformação de um texto assemelha-se a um assassinato", pois "muda a aparência de algo", põe "algo em outro lugar", desloca-o. (SLODERDIJK, 2009, p. 25).