Artigos de luxo

 

 

Às vezes eu sinto remorso. Tiago nunca me perguntou pelo pai e eu também não disse nada. Pra que é que eu ia dizer que não sabia nada sobre o cara com quem saí uma vez depois de um baile e nunca mais pus os olhos em cima? Ele disse que se chamava Almir, mas a gente diz o que quer. É ou não é? Não era bonito, nem achei simpático, mas era alinhado. A roupa muito limpa e bem passada, barba feita. Dançamos um forró sem compromisso, tomamos umas e outras e fomos pra um lugar qualquer. Ele estava tão bêbado, que nem notou quando retirei uma espécie de broche que estava pregado em sua camisa, um alfinete dourado com uma figa, um trevo e um crucifixo. Coisa sem valor, mas que guardo até hoje, nem sei por quê. Fora isso, não restou mais nada daquela noite. Mais nada é o caramba. E o Tiago? Não é nada?

Eu já tinha a Sthephanny, fruto de um namorico adolescente. Depois, veio a Fernanda. Dessa vez eu tava apaixonada. Juntei os trapos e tudo. Quando anunciei que ia morar com o Romilson, meu pai construiu um cômodo e cozinha nos fundos da casa pra nós. Coitado do pai. Gostava do Romilson. Dizia que ele era trabalhador e boa gente. Quando ele foi embora, acho que o pai sofreu mais do que eu. De repente, ele não quis mais saber de mim. Disse que pagava a pensão da menina todo mês, visitava, mas não queria mais nada comigo. No começo, achei que fosse mudar de ideia, mas ele logo se arranjou com outra e teve até um filho com ela.

Meu pai me disse que era natural ele ter ido embora. Que eu não queria saber de melhorar de vida e que, se ao menos eu limpasse, lavasse e cozinhasse direito, talvez ele tivesse ficado. Disse que ele merecia mesmo coisa melhor. Doeu. Aquele dia doeu. E o que mais machucou foi perceber que, talvez, o pai tivesse razão. Depois que foi morar com a outra, o Romilson se transformou. Cabelo sempre aparado, camisa passada com capricho. Até os dentes tratou.

Mesmo com a pensão da Nanda e o benefício do governo, às vezes eu não tinha nem o do pão. E pra não amolar a mãe a todo o momento, eu recorria à caderneta no armazém do Bigode. Mas ele não fiava cerveja e nem cigarro. Dizia que pra essas coisas o povo sempre arranja o "em espécie". Também não liberava refrigerante e outros artigos que considerava de luxo e suspendia o crédito se o pagamento atrasasse um só dia. Mas fiava cachaça pros pinguços. Falava que bêbado que se preza paga a conta do bar em dia, pra não correr o risco de ficar sem mamar. Um dia, mandei o Tiago ao armazém. Ele devia ter uns seis anos. Encomendei pão, leite, uma pedra de sabão, cigarro e um Ki-suco de uva. A Nanda queria suco. O Bolsa ia sair no dia seguinte. Junto com a listinha, mandei o dinheiro do cigarro. Mas o Tiago voltou cabisbaixo e com a sacola vazia.

— Bigode não quis fiar mãe. Mandou dizer que a senhora tem que acertar a caderneta primeiro. Trouxe só o cigarro.

Senti uma raiva tão grande que não cabia em mim. Raiva do Bigode, do meu vício, de mim mesma. Ralhei com o Tiago.

— E pra que você trouxe essa merda, então? Por que não trouxe o pão e o suco para a sua irmã?

— E a senhora ia ficar sem fumar, mãe?

Eu falei só por falar. No fundo, sabia que se ele não tivesse trazido o cigarro eu ia acabar me descontrolando e descontando minha bronca em alguém. Nele, provavelmente. Ele também sabia. Tudo na vida é questão de costume. Os meninos nasceram na pindaíba. Se habituaram a viver assim. A não ser a Nanda. Principalmente quando chegava da casa do pai. Vinha cheia de vontades, querendo isso e aquilo. Lembro de um dia em que a mãe me arrumou um pacote de macarrão e uma lata de molho. Era só o que tinha para o almoço. E se a mãe não tivesse quebrado o galho, nem isso ia ter. Mas quando pus o macarrão no prato da Nanda, ela começou a choramingar. Queria queijo ralado. Que merda. O choramingo virou choro. O choro virou berreiro.

— A Val sempre põe queijo no macarrão pra mim.

Fiquei cega.

—Vá morar com o seu pai, então. E com a piranha da Val, já que ela é tão boa.

E mandei o prato com macarrão e tudo na parede.

De noite, a Nanda começou a ter febre. Preocupei. Ela ardia. E murmurava que queria macarrão com queijo ralado. Tinha sobrado um pouco na panela. Mandei o Tiago no armazém, pedir o queijo e disse pra anotar na caderneta.

— Bigode vai negar, mãe. Vai dizer que é luxo, que não é necessidade.

Explodi.

— Vai moleque desgraçado. Não discute.

Tiago demorou, mas trouxe a encomenda. Eu já estava impaciente.

— Foi buscar o queijo na fábrica?

— Não senhora.

Stephanny, assim como eu, arrumou barriga com quinze anos, só que deu sorte. O moço quis se ajuntar e criar com ela a minha netinha. Tiago sempre foi ajuizado. Com oito anos começou a fazer carreto na feira. Depois, conseguiu um bico numa oficina mecânica e me entregava quase todo o dinheiro que ganhava. Guardava sempre um pouquinho numa caixa de sapato em cima do guarda-roupa e eu respeitava. Não me faltava nada. A Nanda também foi crescendo e, praticamente, mudou para a casa do pai. Eu achava até bom. Um pouco de paz. Finalmente.

Mas, um dia, notei que a caixa com o dinheiro não estava no lugar. Não dei importância. Achei que ele ia comprar um tênis da moda, uma camisa, qualquer coisa assim. Andava tão bonito o meu moleque. Devia estar enrabichado. Era uma segunda-feira, nunca esqueço. Fazia um frio de rachar e eu estava encorujada dentro de casa. De repente, ouvi um pipoco. Parecia tiro. Depois, gritaria, confusão. Logo chamaram da calçada.

— Nice, corre. É o Tiago!

Meu coração disparou. — Meu filho, mataram meu filho!

Naquele dia, Tiago entrou no armazém e descarregou três tiros no Bigode. Não fugiu, nem largou a arma. O dinheiro que vinha ajuntando era pra isso. Pra comprar um revólver.

Desde então, todos os domingos, religiosamente, entro nessa fila e espero pra ver meu menino que agora é interno.

Tiago não soltou uma palavra. Nada. Nunca. Mas, não me sai da cabeça o dia em que a Nanda quis comer o maldito macarrão com queijo. Por que foi que o Tiago demorou tanto naquele dia, meu Deus? Por quê?

 

 

 

 

 

 

Avesso

 

 

Os olhos de Helena estavam escancarados, mas parecia não haver ninguém em casa.

— É assim mesmo!

A enfermeira me confortou com tapinhas nas costas e cara de volte daqui a uns cem anos. Contudo, na visita seguinte, encontrei-a diferente: Desmamando o transe, feridas morrendo, cicatrizes nascendo.

As voluntárias serviram o lanche. Me aproximei com cuidado e fiz o convite:

— Vamos?

— Tá.

Colheu uma pequena pinha de uma travessa azul, com o cuidado de quem ampara um prematuro. Namorou-a.

— É linda, né? A cor tão suave, a casquinha craquelê, sempre doces. Nunca encontrei uma que não fosse doce.

Explodiu a frutinha no canto da boca, riu um pouquinho. Recolheu uma semente banhada de saliva.

— Até os carocinhos são bonitos.

Mais um pedacinho de sorriso e continuou observando.

— Parece envernizado. Eu faria um colar com muitos deles.

— Gosta de artesanato? Não quer participar da aula de bordado hoje? Dá uma olhada, quem sabe se anima?

— Tá.

Eu queria conversar com ela longamente, mas o coordenador de estágio me acompanhava de longe, então, a conduzi e ela ocupou um lugar na roda. A professora entregou o material. Algumas mulheres tinham trabalhos iniciados e os receberam de volta. Ela examinou o bastidor de uma colega. Um pato num pequeno lago. Estudou os pontos débeis, a trama confusa de traçados frouxos, os nós pelo caminho. O pobre meio pato, meio atropelado. Diagnosticou:

— O problema começa no avesso. O avesso tem que ser perfeito. Se for embaraçado, cheio de falhas e nós aparentes, a peça perde valor. A não ser que você o esconda, mas nem sempre dá pra fazer isso.

— Pelo que vejo, você já sabe bordar, não é querida? Começamos a ensinar sem muita preocupação com o avesso pra não complicar as cabecinhas iniciantes.

— Desculpe, mas discordo. O melhor é fazer tudo certo desde o início. Se a gente acerta no começo, não dificulta o meio e não mata o fim.

A mestra fez uma ruga na testa, arqueando as sobrancelhas desenhadas a lápis:

— Quer auxiliar as meninas? Quem sabe não aprendem melhor com você?

— Tá.

Anotei no meu caderno de impressões:

"Hoje ela parece um prédio de poucos andares num bairro de classe média, desses com cheiro de comida fresca e amaciante de roupas pelos corredores. E vasos de planta e gato na janela, porteiro cochilando, um par de tênis repousando sobre o capacho e som de novela repetida na TV". Com o bastidor em punho, remexendo as meadas, interpretando os gráficos, gestando pequenos trens, coelhos, ursos, borboletas, ajudando as colegas a aperfeiçoar seus avessos, era assim que eu a via. Uma tarde chuvosa de quinta, num outono bom. Em nada lembrava a figura que, nos primeiros dias de internação, tentava escalar os muros, agredia funcionários e ameaçava atentar contra a própria vida. Voltei algumas páginas e li as anotações sobre minha análise inicial: "Um edifício abandonado, numa periferia triste, desassistida. Paredes decoradas com restos de incêndio, canos estourados, vidraças estilhaçadas, escadas escuras. Cheiro fétido de dejetos. Uma noite de domingo nevoenta, num inverno tenebroso".

Numa das visitas, cheguei depois das voluntárias. Ela já estava trabalhando. Tinha iniciado um conjunto de toalhas bordado com muitas cores. Puxei assunto:

— Gosto mais da vermelha.

— Não é vermelha. É magenta.

— Ah, tá. Então, gosto mais da magenta! 

Tão delicada quanto os desenhos que tecia, gostava de música e poesia.

Declamava trechos, ensaiava pedacinhos de canção. 

Sexto mês, fim do processo de desintoxicação. Voltou para casa numa manhã de sábado e fui me despedir. O pai guardava as malas no táxi, a mãe conversava com o médico. Me aventurei:

— Posso te ligar, Helena?

— Essa semana vai ser cheia. Tô pensando em procurar trabalho, mas preciso de documentos novos. Uma porção de coisas pra resolver, sabe como é…

Emitiu uma nota de sorriso.

— Então… me dá seu número e eu te dou o meu.

— Tá. Mas tem que ser o do orelhão comunitário lá da rua. Pode ser?

— Claro.

Elogiou meu vestido. Disse que eu ficava bem de vermelho. Esclareci:

— Não é vermelho. É magenta. Deu um trabalhão pra encontrar, mas tá na etiqueta: Magenta! — Liberou mais um bocadinho de riso para a minha coleção e me estendeu um pacote pequeno. Havia feito um presente para mim. Uma caixinha bordada de flores.

— É linda! Caramba! Como soube que eu gosto de margaridas?

— Você disse um dia.

— A gente se fala, então?

— Tá.

Abraço.

Eu não quis ligar na primeira semana. Esperei. Talvez, ela ligasse. Na segunda semana, tomei coragem:

— Alô! Por favor, posso falar com a Helena do trinta e nove?

Foi o pai quem atendeu ao telefone.

— Quem quer falar com Helena?

— Seu Arimateu? Sou eu, Lígia, estagiária da clínica.

— Helena não durou uma noite em casa, moça. Aquela ali não tem mais jeito, não.

 

 

 

 

 

 

Coisa de guarda-chuva

 

 

Leleco desceu a ladeirinha deslizando. A chuva miúda transformou a terra numa espécie de creme, parecido com o mingau que serviam na escola de vez em quando. As solas dos tênis ficaram lambuzadas. Chuvica atrevida, como quem não queria nada ia ensopando tudo. Ele meteu o único caderno que carregava por baixo da camiseta. O lápis mordiscado na ponta viajava no bolso da bermuda, junto com o pedaço de borracha. Alcançou o toldo da vendinha e estacionou pra se ajeitar. Sem meias, os pés molhados congelaram. A friagem escalou as pernas e se instalou na espinha. Porqueira de dia chorão. Já estava de partida quando avistou Pinguinho, que vinha abrigado debaixo de um guarda-chuva grande e colorido. Dentro do agasalho, Pinguinho era como um bolo crescendo no forno. Estufado, quase gordo, equipado com botas, touca, um cachecol magrelo esgarçado e a mochila de borracha protegendo cadernos e livros. Leleco caçoou:

— Guarda-chuva de mulherzinha, é?

— Minha mãe me obrigou a trazer.

— Você nem parece homem, todo embrulhadinho.

Pinguinho suspirou encabulado. Caminharam quietos. A chuva menina foi avolumando, tomando corpo de moça. Leleco tiritava. Pinguinho ofereceu com humildade:

— Vem debaixo!

Leleco aceitou o convite com indiferença. E, apesar da cara enfezada, intimamente, fez de conta que era o dono do guarda-chuvão. Imaginou-se no lugar do amigo, agasalhado, protegido, a mãe ajeitando o capuz e entregando o lanche. Um beijo na testa na hora da despedida e a promessa de salsicha com batata para a janta. Por último, a recomendação para que ele prestasse atenção na aula e se comportasse feito gente. Mas a mãe de Leleco andava muito ocupada, fugindo de gigantes que ela dizia, a perseguiam o tempo todo. Leleco conhecia o esconderijo onde ela se refugiava com outros companheiros. De vez em quando, ele embarcava no ônibus bairro-centro e quando avistava a catedral, abria muito os olhos cor chá-mate e começava a investigação. Descia no ponto da praça e perambulava. Nem sempre a encontrava, mas quando conseguia vê-la, ainda que de longe, sentia o coração veloz como se escorregasse por um barranco montado num papelão. Uma amargura bondosa o visitava, sem jeito de entristecê-lo muito. A mãezinha, ás vezes, passava por ele e não o reconhecia. Em algumas ocasiões, ele a encontrava dormindo numa esquina e tinha vontade de fazer carinho em seu cabelo, deitar ao lado, se aconchegar em seu peito. Um dia, ela voltaria para casa. Deixaria para trás o medo dos inimigos e não precisaria mais se munir com as armas que a entorpeciam para se sentir segura. Tomara acontecesse depressa, em tempo ainda de encontrá-lo menino. 

Antes de chegarem à escola, a chuva emagreceu e Pinguinho fechou a barraca. Descansou o braço já adormecido de andar estirado para contemplar a altura do amigo. Leleco apertou o passo e Pinguinho o seguiu obstinado.

— Leleco!

— Quié?

— Eu trouxe dois pães de açúcar com manteiga. Um é pra você.

Leleco sentiu-se mal por sua rudeza. Olhou Pinguinho do alto de seu bom tamanho de menino esguio e aplicou-lhe um tabefe na cabeça. 

— Vamos treinar chute a gol depois da aula? 

Pinguinho iluminou-se.

— Comigo agarrando?

— Claro né, Pingo! Você anda um baita frangueiro ultimamente.

 


 


 

 

 

 

[imagens ©dung tran]

 

Lilia Guerra é paulistana e ariana (abril de 1976) Em 2014, publicou o romance Amor Avenida pela Editora Oitava Rima. Contribuiu com as coletâneas Contos & Causos do Pinheirão, com o coletivo Armário do Mário, da Casa Mário de Andrade e Taras, tarô e outros vícios, com o Palavraria, pelo selo Casa das Rosas. Participou de oficinas e ateliês literários e atualmente dedica-se à confecção de contos. Contos, contos e mais contos. Em 2018, amparado pelas mãos experientes da Editora Patuá, veio ao mundo o livro de contos Perifobia, finalista do Prêmio Rio de Literatura 2019. Em 2021, na mesma acolhedora casa, nasce o romance Rua do Larguinho.