[Captura de tela do filme O Enigma de Kaspar Hauser, de Werner Herzog, 1974]

 
 
 
 
 
 
 
 
 

Cumpre lembrar essas criaturas populares que as cidades pequenas costumam ter às vezes por longo tempo, às vezes por temporadas curtas, quando ficam folclóricas e se tornam quase parte da paisagem ou ingrediente turístico. Os moradores sempre as apontarão aos visitantes, num misto de crueldade na descrição de suas manias e inferioridades sociais e apreço desdenhoso por sua singularidade, como se elas não fossem de certo modo universais, como se fossem de uma completa peculiaridade quando, na verdade, cada pequena cidade terá as suas e nem deveria se julgar tão singular em cultuar sadicamente criaturas que se distinguem pela proscrição e a quase marginalidade.

Essas figuras são menos cômicas que denunciadoras de certas verdades que os bons cidadãos, protegidos em suas casas e diante de suas televisões, deveriam conhecer se não vivessem tão acovardados e escondidos. São criaturas de contraste e paradoxo, visto que, sendo Ninguéns, tornam-se imensamente conhecidas, mais conhecidas que o cidadão banal a quem se diz "bom-dia" automaticamente e por quem o interesse demonstrado é mínimo, rotineiro. Esses seres humanos vieram de algum lugar, devem ter tido famílias, têm lá suas histórias, mas ninguém está interessado nisso e eles são apenas uma festa para a zombaria das crianças e a superioridade obtusa dos adultos que deles desfruta como de palhaços gratuitos. Vêm do nada, voltam para o nada ou podem ser vistos em outras ruas de outras cidadezinhas, acabando em valas comuns de cemitérios onde seus restos mortais não serão visitados por ninguém.

Em Novo Horizonte/SP, minha cidade natal, lembro-me, sobretudo, de Manézinho-Cata-Tudo, Chico Manelão e Maria Fifigura. Sintomaticamente, eram todos negros numa cidade onde contava-se nos dedos os negros e praticamente parece não haver lembrança de cidadãos negros destacados. Novo Horizonte, como muitas cidades do interior de São Paulo, é habitada majoritariamente por brancos, em geral, descendentes de italianos, portugueses, árabes, de japoneses em pequeno número, e essa "branquitude" toda torna os negros automaticamente excluídos. Manézinho-Cata-Tudo, Chico Manelão e Maria Fifigura já estavam destinados a uma diferença fatídica pela própria cor.

Manézinho tinha uma carriola com que, pacientemente, ia recolhendo papéis e tudo quanto achasse pelas ruas, fazendo jus ao apelido. Era pequenino e respondia com uma voz de criança, sempre tendente a concordar, quando lhe perguntavam, por maldade, para que recolher tanto papel, tanta latinha, tanto lixo. Ele seguia com sua carriola até uma casinha que tinha, por perto do córrego da Estiva, num local que seria mais tarde parte de um bairro populoso, o Aeroporto. Era uma figura bastante regular pelo centro da cidade, beirando calçadas com sua carriola, ouvindo zombarias. Um dia, não se falou mais nele. Mas eu soube que sua casinha, com todos os papéis e detritos que ele havia juntado naquele recolhimento minucioso de anos e anos, havia sido incendiada. Ninguém me informou se ele havia sobrevivido ao incêndio. Provavelmente não. E é bem pouco provável que os novorizontinos tenham se incomodado com isso.

Chico Manelão era o "pau d'água" mais famoso da cidade. Com seu chapéu, com uma roupa amarfanhada que parecia sempre a mesma, os sapatões, o andar meio trôpego, estava quase sempre embriagado (da cachaça que alguns lhe pagavam) e não me lembro que falasse muito. Replicava com graça aos que se dirigiam zombeteiramente a ele, como se, no seu zero de autoestima ou no seu tranquilo fatalismo, fosse natural ouvir zombarias pesadas e ele só não se incomodasse por estar bastante anestesiado pela realidade cruel para se importar com isso. "É sim, é isso, eu sou o Chiquinho mesmo...", ria, autorizando todos a rirem dele, a acharem-no um bom sujeito, visto que sabia se pôr em seu lugar de coitado e se deixar avacalhar. Nada melhor para os bons cidadãos do que um sujeito diferente que se humilha voluntariamente, dando-lhes a segurança de sua pretensa superioridade.

O curioso desses tipos é que, existindo por algum tempo ao nosso redor, nós sabendo deles por como que fazerem parte da própria atmosfera da cidade, ao morrerem ou desaparecerem de cena, nada do que lhes acontecera ficava claro. Não sei que fim teve o Manelão. Mas ficou a impressão de que, naquelas roupas, naquele chapéu, ele procurava ainda uma dignidade que havia sido esmigalhada, tirando o chapéu para cumprimentar as pessoas e andando com certa presunção meio aristocrática. Na última vez que o vi, eu estava com um amigo que, insone, me convidara a dar voltas com ele em seu carro, até tarde da noite, e lá estava o Manelão, dormindo jogado e fedendo a cachaça à porta de um edifício público imponente. Meu amigo levou para ele uma das garrafas de cerveja que vinha consumindo no carro. "Deixá-lo mais bêbado ainda?" — perguntei. E ele respondeu: "Que outro prazer resta na vida desse infeliz?".

De Maria Fifigura pouco posso dizer, porque ela provinha de uns lados da cidade que eu mesmo discriminava por medo de sua fama de antro de sujeitos desqualificados e perigosos, um "Risca-Faca" a caminho do cemitério, ao lado de uma avenida (Da Saudade) por onde eu passava apenas nos Finados ou quando tinha que seguir o enterro de algum familiar. A estranheza de seu apelido, Fifigura, se explica: era gaga, e a repetição do "Fi" no apelido uma dessas operações cruéis com que as pessoas eram em geral apelidadas também por suas deficiências e defeitos públicos na cidade, tornando as discriminações mais aguçadas. Além de negra e gaga, era pequenina, vesga, e carregava sempre uma bonequinha, que era o seu talismã mais querido. Claro que muitos queriam tomar a boneca de suas mãos, a ameaçavam, rindo, só para ouvi-la balbuciar com dificuldade: "Não, não faz-faz-faz isso-não...". Sua outra paixão era por um tipo popular da cidade que, embora bigodudo e de atitudes machonas, sabia-se que era homossexual. Pois bem: a graça era perguntar a ela quando ia casar-se com o fulano, e ela respondia que "não não de-demora mui-muito não...", alguns informando-a com um máximo de crueldade que o tipo era um "veado". Também dela eu nada mais soube. Mas não teria estranhado se me contassem que haviam pisoteado e estripado sua boneca e tornado sua vidinha problemática (provavelmente nem casa tinha) ainda mais infeliz para ouvirem seus protestos gagos e darem boas risadas.

Não riam assim de Kaspar Hauser, trágico proscrito alemão, criado numa caverna até a juventude, que rendeu um filme maravilhoso de Werner Herzog e que dizia na frente de seus carrascos que o tomavam por objeto de desprezo e riso: "Tenho a impressão de que minha vinda a este mundo foi uma longa queda". Continuaremos rindo de tudo que julgamos o avesso de nós sem pensar que um dia poderemos ser nós os objetos desse riso que de engraçado e justificável não possui nada.

 

 

junho, 2021