©eliane meyer
 

 

 

 
 

 

 

 

logo será noite



quanto viste,

o quanto amaste,

de quanto fizeste,


ninguém jamais verá,

ninguém o saberá,

ninguém se lembrará.







Aonde vamos nesta noite escura?



Guiados sob a luz das viaturas,

com o peito insuflado em grito horrendo,

aonde vamos nesta noite escura?


Por todo lado assomam sepulturas

enquanto nós seguimos, num crescendo,

guiados sob a luz das viaturas.


Unidos não no amor, mas na tortura,

já não sei o que somos nem entendo

aonde vamos nesta noite escura.


Confiantes de ter real cultura,

espezinhamos leis e referendos,

guiados sob a luz das viaturas.


Quando foi que trocamos a ternura,

o amor e a compaixão por dividendos?

Aonde vamos nesta noite escura?


Impõe-se nova, exótica escritura:

não se pergunte, nem aos reverendos

guiados sob a luz das viaturas,

aonde vamos nesta noite escura.







ecce homo



esse homem, enterrado até o pescoço

na pilha de embalagens e dejetos,

recuperando um naco de alumínio,

um papelão e três garrafas PET,


ou empurrando pelo asfalto quente,

das cinco da manhã às seis da tarde,

duzentos quilos de quinquilharia

no dorso da carroça improvisada,


talvez um dia tenha tido um nome;

talvez um dia tenha tido pais,

irmãos, avós e tias; mas talvez,


talvez nem saiba de que ventre veio

nem a que ventre vai no frio da noite,

quando a tristeza invade o coração.







Domingo no Parque Farroupilha



Na feira de domingo há cor e som e cheiro.

Casais, cachorros e mercantes argentinos

almejam ser ouvidos mesmo enquanto os sinos

de um templo antigo e triste dobram altaneiros.


Crianças pobres, junto a um velho violeiro,

entoam cantos de seus ancestrais andinos

com olhos melancólicos e clandestinos,

perdidos entre o vai-e-vem dos domingueiros.


Sentado sobre um banco à sombra na calçada,

eu tento reverter a vida em poesia

com versos jâmbicos e rimas alternadas.


Alegro-me com vê-lo feito em primazia

e vou-me embora assim sem ter comprado nada

nem feito nenhum gesto de filantropia.







Carlos



I



quando eu nasci,

minha mãe chamou-me Carlos:

nome de poeta, ela dizia.


porém,

à exceção de minha avó,

que às vezes me chamava de Meu Carlos

(não Carlos simplesmente nome,

mas Carlos adjetivo,

sinônimo suspeito de tesouro),

em casa sempre fui Leonardo.




II



no primeiro ano do Colégio

— eterno trauma —

a professora fez-nos plaquetinhas,

cada uma com um nome.


peguei a de Leonardo,

que logo me acusou à professora

de ter-lhe arrebatado o nome.


já havia um Leonardo,

comunicou-me a mestra.

então,

pelos próximos dez anos,

seria Carlos.




III



mas na verdade não fui Carlos.

jamais fui Carlos,

nome de poeta:

fui Carlinhos,

nome de sambista ou traficante,

e fui Carlão,

o borracheiro.


mas, nesses dias frios,

inóspitos,

acordando cedo para trabalhar,

às vezes pensativo a mim me digo:

vai, Leonardo,

ser Carlos na vida!







Há duas ou três ruas na Bartira



Há duas ou três ruas na Bartira

se acaso tu desejas ir embora,

mas todos os caminhos, mundo afora,

convidam-te a voltar de onde partiras.


A cada teu retorno em que confiras

a casa onde os teus pais ainda moram,

procura descobrir por que tu choras

nas horas em que ao choro não se aspira.


Mas, sobretudo, chora — pois jamais

se sabe ao certo quando novamente

se retorna, nem mesmo ao quê e a quem.


Existe no teu peito, tão somente,

a certeza de a volta ser um bem

que cura tanto quanto te desfaz.







a delicadeza das coisas cotidianas



leva mesmo um tempo

sequência

de atos e ditos


espaço sentido

intenso

sem que se sinta


viração das horas

por entre

os desencontros


equação de ritos

refeitos

ressignificados


mas que eventualmente

um dia

plenos se moldam


na delicadeza

das coisas

cotidianas







vivendo aprendo coisas dolorosas



"vivendo aprendo coisas dolorosas"

seria um bom final de um bom poema

que há vários dias tento arquitetar,

mas não consigo; falta força, falta

fôlego, perspectiva, algum sentido —

afundo-me em profundo descaminho.


talvez alguém pudesse, gentilmente,

traduzir meu poema para o grego

e perdê-lo nalgum papiro roto,

quase todo ilegível à exceção

de um único brilhante verso meu:

"vivendo aprendo coisas dolorosas".







Meus fracassos se erigem como monumentos



Meus fracassos se erigem como monumentos,

altivos, permanentes, sempre à vista.

São feitos de matéria artificiosamente

engendrada — conspícua e duradoura —

e lançam densa sombra sobre as silhuetas

incertas, fugidias, resignadas

do que talvez um dia, sobre a areia, alguém

houvesse registrado algum sucesso.







inexiste aprendizado



há tão somente

a eventual impossibilidade

de reencenar os mesmos erros


e a saudade, filha do impossível,

última provável companheira

dos que permanecem







Regressos



Passamos novamente pelos mesmos

velhos cenários onde um dia alguém

talvez te tenha dito algum carinho,


tomando a tua mão (teus longos dedos,

não sei, menina, aonde vão). Talvez

a tua mão pertença a um outro tempo,


a uma outra história, feita de regressos

aos mesmos périplos por que buscamos

saber se já se pode desta vez


(passando novamente pelos mesmos

velhos cenários entre as mesmas velhas

pessoas) ser feliz talvez agora.



[Poemas do livro Regressos. Casa Martelo Editorial, no prelo]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Leonardo Antunes (São Paulo, 1983). Poeta, tradutor e professor de Língua e Literatura Grega na UFRGS. É autor de Lícidas (2019, Zouk) e de João & Maria — Dúplice coroa de sonetos fúnebres (2017, Patuá), que recebeu os prêmios AGES (melhor livro de poesia) e Açorianos (melhor livro de poesia e livro do ano). Tradutor do Édipo Tirano, de Sófocles (2018, Todavia), atualmente dedica-se a uma tradução da Ilíada e da Odisseia, de Homero, em decassílabos duplos.