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Eleonora quer morrer



Os olhos como duas cebolas, cheios de camadas, ardidos. Enquanto encara o espelho sente vontade de chorar. Recolhe e remonta em sua cabeça as imagens dispersas dos dois últimos pesadelos das duas noites anteriores… Tentando escapar de ondas gigantes, correndo, esbaforida, fugindo de um tsunami. Não conta para ninguém, pois sua mãe dizia que, sonho ruim quando falado, se realiza. Mesmo morando a cem quilômetros do litoral, prefere não confiar nas improbabilidades.

Não se sabe ao certo quantos anos Eleonora tem. Só se pode afirmar que é menos do que ela mesma enxerga no reflexo projetado entre marcas de dedos e resto de pus seco — resultado do bombardeio cometido por uma espinha. A marca ainda está lá, inchada, em seu queixo…

Tem marcas demais em seu rosto. Dobras, manchas, feridas, pelos. Enquanto passeia os olhos em cada dita imperfeição, tem a impressão de testemunhar seus contornos derretendo, as bochechas caindo muito lentamente, segundo após segundo. Tem certeza de que escorre, que envelhece. Sem nenhum resquício de piedade do tempo sobre ela.

Eleonora cresceu com medo do mar, e a agonia do pesadelo debate-se dentro dela. Assim, fitando-se tão aflita, conclui que é ainda mais feia do que pensava há minutos. Queria ser como algumas atrizes de novela que, até para chorar, choram bonito. Pensa, "e se fizesse um peeling-lifting-botox-microagulamento?". Modela seu rosto com as mãos, como aprendeu na revista de beleza que comprou mês passado, antes de ser demitida. Desliza os dedos abaixo da sobrancelha, de dentro para fora, e abaixo da pálpebra inferior corre pelo sentido inverso, retornando para o centro, repetidas vezes e bem firme, que é para fazer efeito. Enquanto seus dedos dentro-para-fora, relembra do dia em que foi dispensada; e quando os dedos fora-para-dentro, continuou sem entender direito o motivo; mas assim que os dedos-sob-sobrancelha, admitiu que andava um pouco desleixada; e no momento em que os dedos toda-a-olheira-até-o-centro, volta para o presente e acha coerente a terem trocado (após anos de empresa) por uma "moça mais viçosa". A região ao redor dos olhos completamente vermelha, viço definitivamente era tudo que lhe faltava.

O apito do micro-ondas faz Eleonora sair em disparada para a cozinha. A lasanha que antes era congelada, está pronta. Como colocada estrategicamente às sete e quarenta e seis, sabe que, agora, são oito horas. A qualquer momento o barulho de uma chave precedida da mão no trinco. O ruído da dobradiça e uns pés toscos arrastando-se pelo carpete. Em cada passo, um rastro de lembrete de que é ele o dono de tudo. Na pia, ela lava a louça fingindo descanso e descaso, como se não tivesse se esforçado para calcular o tempo da janta pronta, da casa limpa, do banho tomado. Um "oi-oi", um beijo na testa. Eleonora entrega o prato cheio ao marido, que foi direto para a frente da televisão. Ela, come sozinha à mesa.

Cavoca a comida, rola a massa de um lado para o outro. Sua atenção está voltada para as unhas, cutículas, mãos pálidas e, a aliança. Pensa em marcar uma manicure, comprar um pote de creme para hidratar os cabelos, iniciar a dieta no dia seguinte — sem falta — cortar os carboidratos e encharcar-se de chá de cavalinha para expulsar aquela barriga que a encara lá de baixo.

A lasanha bagunçada e fria. Não tem nem ideia de quanto tempo ficou ali na ponta da mesa engendrando seus consertos. Ouve o ronco azucrinante de toda-santa-noite, percebe que vem do quarto. Eleonora caminha até à sala vazia/ocupada pelos barulhos do filme da madrugada, pela luz acesa, pelo prato raspado e lambido. Assaltada por ela mesma, sem reparar na nascente que fez desembocar aquilo, sem detectar o caminho percorrido até à ação, sem espaço para reação, sua mão simplesmente lança o prato contra a parede, que se espatifa no chão, sem o barulho que ela inconscientemente desejava, por causa do carpete que abafou. Ainda alimentada e movida por uma força até então desconhecida, saca a chave do carro de seu marido — que o havia comprado "zerinho" com o prêmio que a multinacional lhe concedera, devido à primorosa gerência — dá partida e segue em direção à rodovia, à serra, ao litoral. Sem dinheiro, sem identidade, sem carteira de motorista,

nada. Nada. Nos pés, a alpargata que usa para andar em casa. Estaciona em uma paralela à beira-mar, desembarca e não aciona o alarme — intencionalmente.

Agora, ali. Cara a cara com o protagonista que tomou conta das suas últimas duas noites, e a perseguiu também durante os dias. Recolhe e remonta em sua cabeça as imagens dispersas. Caminha de encontro àquele gigante rebelde sentindo-se uma gladiadora. O som das ondas causa vertigem, mas Eleonora não recua. Os pés ainda calçados banham-se e, ao invés de atacada, tem a sensação de ser envolvida. Avança para que a água abrace seus joelhos, joga os olhos para baixo e vê se é possível encarar seu reflexo. Não encontra, gargalha. Dá pulinhos aproveitando o balanço e

segue em frente, até que seus seios fiquem molhados. Ali, aproveita e despe-se inteira. Passeia pelo próprio corpo, mistura sua textura com a temperatura da água, é embalada como um bebê recém-nascido, coberta, aquecida e com a cabeça protegida... Nada frágil. Chefia o tempo e a atenção do mundo!

Novamente perde a noção das horas, é incapaz de supor quantos minutos se passaram desde que tirou o mar para aquela dança. Olha para os dedos enrugados como os de uma velha. Acompanha cada curva, cada onda e, se assim, parecendo um labirinto, consegue achar bonito, conclui que as linhas ao redor dos olhos também são passíveis de serem admiradas. Eleonora não está derretendo, mas esparramando… E ocupando sozinha um oceano. Lembra da "moça mais viçosa, entrando agora no mercado de trabalho, com vontade de aprender", mas não pensa na moça em si, nem chegou a conhecê-la. Reproduz em sua cabeça a voz do chefe, e em sua memória a ânsia que sentia ao ser atingida pelo hálito azedo do mesmo.

Eleonora não quer mais pensar no que pensava. Olha para o horizonte e não enxerga o fim, não sabe quando termina o céu e começa o mar, não sabe quando termina o mar e começa o oceano. Não quer voltar para o carro, para a casa. Não quer chegar onde não dá pé, pois não quer mais morrer. Eleonora não quer morrer. Eleonora descobriu que tem vida. Tem viço. Se Eleonora envelhece, é porque está viva.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Juliane Souto trabalha com teatro e literatura. É atriz, escritora, mediadora de leitura e contadora de histórias. Formada em Bacharelado em Artes Cênicas na UNESPAR/FAP em 2014, trabalha desde 2013 junto ao Enxame Cultural com projetos artísticos e ações de fomento à leitura. Atuou como professora de teatro em equipamentos sociais como CRAS, CATI e CAPS, e como oficineira em mostras e festivais. Também tem sua empresa no Bairro Alto (Curitiba), onde gerencia a loja A Tenda de Mercúrio.