utensílios



Como dizer usando colheres

dizer enquanto borbulha

dizer sem queimar 

o arroz

dizer de dentro de uma panela

de cinco litros

picando legumes

com as pontas dos dedos


como dizer encarando batatas

sem ironia

dizer

que seu destino é virar

purê.


como dizer entre colheres

conchas 

e escumadeiras

que a faca é também

um objeto feminino.







anoitecida



Não basta

o eriçar dos pelos

costas arqueadas

unhas cravadas no travesseiro

entre as pernas

não basta

dois dedos exaustos do gesto cíclico

a cama encharcada

cabelos emaranhados sobre os olhos

não basta

o lábio mordido

o filete de sangue

a dor que sentiremos amanhã

não basta

a mão no pescoço

o ar rarefeito

não basta

virar os olhos por infinitos

o sussurro, o gemido, o grito

não basta

tudo o que não é silêncio

não basta

ir e ir e ir e então


a quebra abrupta

(não basta)

um braço esticado na escuridão

a ânsia pelo último mergulho

abandonar-se

bastar-se

saber:


a raiz insaciável do desejo

o verdadeiro gozo está por vir.







escassos



Sei que não me respondes


talvez seja o tempo

o deslocamento

da pergunta

a inquietação

da minha voz


tão inadequada

trêmula


sei que não me respondes

e quando o fazes te alongas

nas pausas


tua boca entreaberta

tua língua inarticulada


em dias esparsos

danço com teu silêncio

e sei que não me respondes


gozo ao supor o que diriam todos

teus monossílabos se pudessem

se deitar com os meus.







vésperas



Abramos pela página quarenta

lá onde Adélia

pousa a velhice entre as folhas

lá onde Cecília

bate com remos n'água


o céu nublado das duas

sussurra a liturgia das horas

o céu nublado das seis

e eu sonhando um peixe vivo

no raso das poças.







fraquejada



Não me peças força

quando as cortinas cerradas

quando o pijama no corpo

quando o gotejar na pia

transbordou às cinco


não me peças calma

enquanto eu durmo

enquanto eu corro

enquanto a polícia invade

meninas no morro


não me peças força

sob a pele roxa

sob um céu tão turvo

sob a cama três ou quatro

copos vazios, pratos sujos


(não me peças) força

se é domingo e nada temos a brindar.







talvez um cavalo me mate



Talvez um cavalo me mate

em três ou quatro mordidas

um cavalo é bem capaz disso


muito se fala da mandíbula de certos cães

mas um cavalo também tem boca e dentes

e consciência deles


todos os alertas preveem o coice 

um cavalo de frente é um perigo subestimado


é preciso uma volta inteira para subir

num cavalo


ainda que eu não tenha montado muito

meu crime foi tê-lo feito

não por trabalho, não por esporte

por passeio recreativo

:

montar num cavalo sorrindo

é um crime que não prescreve


digo para mim mesma que minha morte não é pessoal

e que o ódio do cavalo

(guardado entre antolhos) se volta

contra a colonização

:

o homem que eu também sou

(um macho comendo outro)

e caio no asfalto como um galho oco


Talvez um cavalo me mate

seria uma morte digna

morrer de cavalo no Brasil

é escapar às estatísticas


se eu tiver tal sorte

torço para que seja de frente

: de mordida

não de costas, não de coice

pois de costas meu cavalo arrisca se revelar

uma égua


e isso eu não suportaria.







toracotomia caseira



Abrir o peito com as mãos

esse espaçador sem aço

não é tão fácil quanto supõem os versos iniciais

prender os dedos em pinça na carne dura do peito

enfrentar a derme na escassez de gordura

a pega frustrada de diminutas falanges distais


abrir no fundo do armário da cozinha

a caixa vazia de ferramentas

tomar emprestado o alicate de Felix

o martelo Ivánova de avermelhar papel

ter sobre a mesa um objeto em cada prato

olhar, sem a coragem necessária para tocá-los


penso logo como seria manusear uma motosserra?

e o abrir o peito não passa

de um beliscão mal dado


algo jaz encerrado

na escuridão do tórax







míngua



não quis o almoço, por seis dias

não quis o jantar

ficou no café ralo com pão torrado

sem se levantar


a cria no peito trazia

a barriga cheia

diferente das outras três.


à noite, ele chegou

faminto

:

comeu fodeu dormiu

(deixou o pão em farelos)


no escuro

aos pés da cama

teve que se agachar

a quarta cria ainda mama

que é pra quinta não vingar.


por seis dias não comeu

no sábado, não dormiu

e no domingo jejuou

por deus.







aplainada



É como se o corpo perdesse

v a g a r o s a m e n t e

a verticalidade


janelas de vidros fechados

desproporcionam lonjuras:

o sol entre as roupas do varal

a lua escondida atrás 

da parabólica abandonada por um vizinho morto


o mundo estreitado em setenta metros quadrados 

não requer escadas

o teto ao alcance de uma vassoura

a tinta depois a laje depois a telha depois 

o céu

em algum lugar lá fora

cem metros mais distante

a cada quarentena dias.







tricot



Desfazer velhos sonhos

como quem puxa a ponta solta

do velho agasalho de lã


enrolar metros e metros

de fio, de novo e de novo

até ter nas mãos um novelo


olhar para ele

como se fosse a primeira vez


tecer com ele uma nova peça

que ao menos sirva


durante a próxima estação.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Juliana Blasina é poeta. Autora dos livros 8 horas por dia (Concha, 2017) e Toracotomia caseira (Urutau, 2021). Tem textos publicados em diversas revistas e seis antologias de contos e poemas. Nascida na Porto Alegre/RS dos anos 80, vive em Rio Grande/RS desde os 90, onde se formou bióloga e mestra em Fisiologia Animal, pela FURG. Cursou a Oficina de Criação Literária do Assis Brasil (PUC, 2018) e, atualmente, conclui mestrado em Letras (FURG), com ênfase em escrita de mulheres. É editora da zine feminista Marítimas e da Gênio editorial. Escreve entre três gatas e um menino. Divulga seus trabalhos no IG @blasina_ju.