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QUANDO EU MORRER



Os deuses dão a sombra e a luz. A sombra brilha,

E o coração da luz esconde um claro-escuro.

O mal vive no bem. Não há remédio, filha:

Tu chorarás por mim nas noites do futuro.


O que nos cabe aqui é a triste maravilha.

Nada é somente suave, ou acre, ou doce, ou bruto.

Tudo fere, e eu também vou te ferir. Oh, filha,

Tu chorarás por mim nas noites do futuro.


Mas é nossa missão cair nessa armadilha,

E o que passou persiste em seu estado puro.

Não vou morrer quando eu morrer. Pois, minha filha,

Tu chorarás por mim nas noites do futuro.







MEMÓRIA DO LÍBANO

(a última canção de Phillipe Abdenur)



Pity the nation divided into fragments,

each fragment deeming itself a nation.

G.K.G



I.



Esse povo desfeito em estilhaços,

cada estilhaço, um solitário povo

— cada mulher, um gênesis,

cada homem, um êxodo,

em cada lar, uma gehenna,

em cada sala, um sol suspenso

para o combate de Josué,

esse combate que não cessa,

essa batalha sob a tarde intransponível

cujo horizonte fulge para sempre,

num sobressalto estático e vermelho

contra o vulto de um rei aberto em cruz

por um desígnio misterioso do Senhor

— sim, esse povo feito de estilhaços,

cada estilhaço, um povo desterrado,

em cada coração tristonho, a Babilônia,

os lábios ressequidos de maná

— o povo em cujo ser verbera ainda

o golpe com que Gilgamesh fendeu

o crânio de Cumbaba, o Pai dos Cedros,

um povo de fragmentos de muralha

dançando sob os cascos de Bucéfalo,

um povo estraçalhado de profetas,

atormentado pelo Paraíso,

um povo de eremitas condenados

a carregar seu claustro pelo mundo

sonhando com a neve da Montanha

que não se liga à Terra pela terra

mas pelo anel das nuvens e miragens

que os pés humanos buscam, mas não cruzam — 


desse povo em destroços recolhi meu pó.

Sou estilhaço desses estilhaços,

eu próprio uma nação, um povo só.




II.



Oh Líbano, te desfizeste em átomos

e não verás meu rosto em tuas praias,

não sentirás meus pés em tuas encostas

não pesarás as minhas mãos de asceta,

nas pedras de Baalbek e de Baskinta,

oh Líbano, serás pra mim agora,

e eternamente, o espectro da jornada

de vinte mil antigos peregrinos

nos conveses de anônimos navios

e um retrato de bordas amarelas

de uma casa de pedra nas colinas

e um pilão esculpido em rocha branca

no mármore de um templo de Dioniso

e o gesto hereditário de fitar

o mundo sob a sobrancelha hirsuta

com os olhos de pedra de um ícone feroz 


Oh Líbano, serás o que mandaste

até mim por caminhos de memória e exílio,

serás esses fragmentos, Líbano, e também

o cheiro de minha mãe.







OLHOS DE PEDRA



Na tarde recém-nascida, me inclino

sobre o cocho d'água fresca.

Não sei por que o faço; mas meu rosto

ali me aguarda, para me trair.

Num instante, este rosto é outro rosto,

que crava em mim seus olhos e me prende

e não me deixa ir, até findar

seu trabalho de espectro.


A linha do queixo, a barba

repetem a imagem rotineira

que encontro nos espelhos da casa

e nos retratos do clã.

Mas estes olhos de pedra,

temíveis olhos alheios,

pedras na pele das águas,

calhaus na superfície tremulante,

translúcidos e duros, estes olhos

de pedra e luz e água e sombra

trespassam a verdade do mundo

incrustados num rosto de ninguém.


Me desconheço,

inútil divindade sem memória:

menos humano, mais real,

na tarde subitamente antiga.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


José Francisco Botelho nasceu em Bagé, em 1980. É jornalista, escritor, tradutor, crítico de literatura e cinema, havendo colaborado com diversos veículos de circulação nacional. Entre suas obras, estão dois aclamados volumes de contos que misturam a ficção histórica, o fantástico e a especulação filosófica: A Árvore que Falava Aramaico (Zouk, 2011) e Cavalos de Cronos (Zouk, 2018) — esse último, grande vencedor do prêmio Açorianos de 2019 e também ganhador do prêmio Minuano na categoria Conto, no mesmo ano. É especialista em tradução de poesia, e suas versões de obras medievais e renascentistas são objeto de estudo internacional. Como tradutor, recebeu dois troféus Jabuti: um por sua tradução de Contos da Cantuária (Companhia das Letras) em 2014, e outro por sua tradução de Romeu e Julieta, de William Shakespeare, em 2017. Também traduziu Júlio César, de Shakespeare, assim como obras de Bram Stoker, Arthur Conan Doyle e vários outros autores, para diversas editoras brasileiras. Vive atualmente em Porto Alegre, Rio Grande do Sul.