§



As chuvas

o outono

o vermelho dos caquis

estragando

nos mercados.


Da janela

vejo os passos que

insistem no asfalto

a aflição da mãe

com o filho nos braços

o velho que busca o pão

para guardar

o vivo entre as mãos

os olhos arregalados

do menino

isolado no sinal.


Vejo o que não passa

o tempo suspenso

as vidas todas

sem garantias.


Vejo o medo

correndo pelos dias. O termômetro

quebrado

o mercúrio espalhado no

chão.


Não juntar, é a ordem.

Escuto vozes

diminuem a distância refazem a distância.


O corpo esquece

a ameaça. O invisível

refaz a lembrança. Tudo é vida

em meio à morte.


Escuto o voo dos pássaros

várias vezes ao dia. Quando

faz silêncio

o animal canta.







§



Algumas tardes ardem nos olhos. Algumas mulheres

tocam o visível.

Decepada a cabeça

ver é um sentido feito com as mãos.







§



As palavras são discretas

Algumas horas do dia são sempre mais difíceis.

Frequentar a aridez

Das tardes sem chuva

Macerar o som e a dor para fazer nascer na língua uma palavra nova.

A expiação, a redenção, a vingança:

florir é um evento imenso.

Deve ser assim também com a metamorfose dos pássaros.







Sonho



Traum — vindo de outro lugar, por um acréscimo de letra,

trauma:

furo, ferida, lesão,

intensidade de fora orquestrando a trama do sonho.

Sonho:

linho denso, leve, claro,

tecido de corpo

na extensão dos nervos, na febre da voz,

na gravidade da mão que desenha em torno do objeto

perdido no olho de quem lê.

Sim, eu te chamo.

Sim, eu te sigo.

Trilho o seu risco, o seu riso, o seu estranho anúncio. O eco

da sua ferida, a gravidade da letra subtraída.

Sem vidência, torno-me a evidência da sua

presença. O corpo da sua imagem, o caminho

do seu som, a extensão do seu gosto. O seu a,

escrito do fim para o início.

É esse o nosso contato discreto.

Tu me lê,

eu escrevo-te.







§



Partindo do princípio — borda, sílaba, silva —

resta o ritmo.

Réstia.

Desisto delas, todas. Fluxo, saliva, dor.

As palavras, elas latejam

entrego ao fogo o mel dos seus olhos.

Desisto delas, todas.

Pés, mãos, língua. Única parte que resiste:

toma posse, devora o outro.

Eu desisto dela, língua. 

Todas elas, palavras que usei: ouriço-coração.

Desisto delas para ser oco, novo, brasa, poema.

Cai o medo, corta o gosto, respira a cor.

Sem composição, resta, libido pura: corpo.




[Poemas inéditos]




Abjurar



Professar o sim para que o mundo recomece em três letras. A casa jorra o seu hálito de cura. Adormece na palavra atravessada pelo anjo que borda espaços abissais. Cair em sonho profundo enquanto o corpo atravessa trajetos impossíveis. Decompor solenemente: golpe preciso na alma de cada manhã.







Amante



Há, nessa palavra, uma física do amor. Vasculho os vestígios, a memória esquecida por detrás, o mínimo rascunho de um exercício de corpo. O resto que se escreve num segundo andamento. Qual o rastro da sua passagem? O cheiro do seu sexo? O ritmo que se desprende das suas formas? Ela não é uma frase. Ela não flutua. Tem os pés assentados no chão. Ela se perde, desterra, erra a hora em meio aos lírios da paz. A natureza lhe atribui outra forma de existência. Vê o sol nascer em meio às roupas do dia. Alguma coisa lhe atormenta a alma. Tem mãos de quem abriu a vida com as unhas e um fragmento de eternidade desenhado no canto dos olhos. Fóssil de lágrima. Às vezes é apenas um corpo olhando pela janela.







Delicadeza



Cuidado. Ela deseja. E o corpo ecoa o mundo. Cuidado. Pausa: ele faz. Corte: ela sente. Se tudo esfria antes que se possa beber, por que manter o quente ali onde os lábios não se deslocam mais?







Distrair



Uma coisa branca espalha-se dentro dela. Um corpo conhece a fundura da noite antes ainda que a loucura faça pacto com as mãos. Morrer deve ter algo de perigoso. 







§



Ela ia morrer.

Fiz um pacto de não impedir-lhe a morte.

A cadela das crias que não vingaram,

a que uivava enquanto o leite empedrava

nas mamas sem filhote

nenhum. 

Os espasmos, o corpo em extensão. 

A espuma branca a escorrer pela face. A coisa branca

espalhada em mim.

Nenhum latido. Nenhum gemido.

Morre com ela a cadela que fui. 

Morre com ela o gosto pela terra. 

A recusa da domesticação. Os cheiros que tingem

a casa. 

A urina no chão da sala de jantar. O pelo

espalhado sobre a impureza das coisas.

Morre com ela a selvageria de uma língua

que só se escuta em latidos noturnos.

Morre, todos os dias com ela, 

o pacto íntimo de habitar o mofo vivo do mundo. 




[Do livro Ensaio para o Poema, Cas'a edições, 2021]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Janaina de Paula é escritora e psicanalista. Possui doutorado em Letras – Estudos Literários – pela UFMG. Publicou os livros O menino azul para sempre (IDU), Tradução e transposição no campo da pulsão de morte (Annablume), Cor'p'oema Llansol (Cas'a edições) e Ensaio para o poema (Cas'a edições).