POESIA DE DOMINGO
Acordei vindo. Até aqui para olhar palavras. As que tocam como os pés no mar, a areia: não afogo, alcanço. A completude do sol céu sal mar e grãos de areia. A errância graciosa dos pés, ora nado, ora mundo. Silêncio debaixo das ondas. O corpo quase nu, arrepiando. Tanto verso pinga no meu chão, escorre pelos passos dentro de casa, molha o azulejo: vim desse mar.
QUATRO
4 vezes
entre ontem e hoje
você
entrou por Vênus.
aviso
sou suave de deslizar
bosque adentro
vou para o banho com
velas e
voo na marca d'água
seu rosto um de cada cor.
ACEITE
Se eu conseguisse falar do que sinto
quando a música bate no ouvido
e me vejo finalmente na caminhada
misturada às folhas de outono
que de leves secas caem
bonitas em um tapete de bosque
mesmo se rua molhada.
Se eu conseguisse eu falaria do tempo
que atravessa a mim e as árvores
do incômodo da diáspora destoando
com os anos
perdendo a cor das ênfases.
Já não grito pelas diferenças,
elas se acalmam e se integram
paulatinamente ao que sou —
começo a me reconhecer nas sombras
e a cuidar das grutas.
AS CORES DOS SONHOS
Derramei as cores das bandeiras
Iran, Iraque, Eritreia, Síria
na sala de rostos
na sala de aula noturna
de sueco para imigrantes
Traguei as cores
saídas das suas bocas
quando a professora indagou
sobre os nossos sonhos
Ser taxista
Ser carpinteiro
Ser pintor de paredes
Ter uma firma de limpeza,
eles responderam
E pude observar o sentido
da palavra sonho
em um trilho simples
e nem por isso menos tortuoso
Desçam as nuvens
até aqui —
qual a altura para arriscar
o voo
quando o céu cabe no
sorriso desses meninos?
[Do livro Poemas Acesos. Patuá, 2021]
QUIROMANCIA
O destino se define
pelas linhas das mãos
pelos ossos das casas
espessura dos livros
lentes das famílias
e agruras das ruas.
Ainda assim eu diria:
destino igualmente, meu bem,
fermenta nas cismas
das suas próprias luas.
ARTISTAS
Decifrar equilíbrios é uma dança,
saltar e permanecer no auge
da coreografia mais desejada
ilumina a sina e a utopia
dos sonhadores.
LABAREDA
A língua estalava como a fogueira acesa
um chiado,
era o ardor voltando fino pelas fuligens
Labareda alta refez o que contávamos,
os voos ora azuis, ora vermelhos
como nossos graus centígrados de corpo,
a fumaça intoxicada de amor.
SOLITUDINE
O relógio da cozinha observa
um prato um garfo um copo
na toalha quadriculada
da mesa em que por uma vida
nos sentamos juntos
e a boca abre a falta
para um bocado frio
de arroz.
SUTILEZAS
Há uma gentileza no gesto
quando se talha a carne
da escultura
Há uma paciência no mármore
quando espera se tornar criatura.
TRABALHO DOMÉSTICO
A poeira espessa
do trabalho doméstico
não é um destino a ser varrido
mas o cerco cruel e sem folga
não remunerado ao feminino. |