©sguimas
 

 

 

 
 

 

 

 

[fragmento]



eu podia dizer que habito várias peles

muitos corpos

[pretos brancos amarelos]

mas prefiro dizer que habito

o-corpo-vermelho-da-dor

de todos os corpos

que moram em mim

: milhares de corpos brasileiros

[enterrados com suas histórias]

sinto uma tristeza desmedida

uma vergonha profunda

desse país.







[entre as horas] 



o amarelo do quadro de van gogh

brilhou na menina dos meus olhos

embaçados de tristeza e 

eu reluzi inteira para a vida 

que estava inerte 

num canto da parede 

refletida na imagem da santa 

que me olhava com seus olhos 

de piedade e mansidão. 


o amarelo do quadro de van gogh 

me queimou inteira na fogueira 

dos desejos de mudança e eu vi

no fundo do branco 

dos seus olhos, 

um vale azul profundo 

: rio onde deságuam possibilidades de cura, 

onde me lavo, me esfrego, 

para sair o cheiro da tinta 

da melancolia 

que me colore todas as tardes

com o cinza das horas 

prenunciando o fim do dia, 

da vida, 

que se abrevia. 

 

 

 

 

 

 

[naufrágios]

 

 

sobre o mar ondulante 

minha embarcação segue à deriva. 

sou obrigada a pegar o leme e a jogar no mar

tudo o que não quero, na tentativa de flutuar

um pouco mais. 

o barquinho segue afundando

:água por todos os pequenos orifícios. 

sou minha própria embarcação. não cabem nela 

desassossegos desmemórias 

desviveres. vivo. 

subo na proa e tento encontrar a ilha, mas descubro 

com saramago minha existência

: cruzo as fronteiras do pensamento e 

atravesso sem cessar 

as tempestades. 

na linha do horizonte alaranjado, 

encontro alguma esperança,

um punhado de paz. 

sempre amanheço 

em apneia

no oceano-azul-das-palavras-que-me-moram e 

lembro que ainda posso nadar. 







[nas bocas do mundo]



lá fora, no meio das árvores, 

uma coruja pia no ouvido do mundo

dizendo que tudo é ilusão

: o homem o bicho o poema


lá fora, no escuro do mundo,

o pensamento flutua nas fendas transparentes 

da memória

trazendo lembranças da morte

: o poema o homem o bicho


lá fora, a tempestade encharca as bocas,

nas vozes sedentas do mundo, 

gritando que tudo é distopia

: o bicho o poema o homem


lá fora, no silêncio do mundo,

há uma esperança  

dizendo que tudo é passageiro

: o bicho o homem o poema







[átimo]



a vida é um átimo e eu 

[sob o azul intenso do céu de inverno]

escrevi o poema-do-infinito

ou a carta-ao-amigo 

[que nunca será enviada]

escrevi 

[palimpsesticamente]

sobre-corpos que se enlaçam

e se dissolvem

paulatinamente

[gotas-de-sal-na-língua] 

nas águas escuras da memória







[poema do nada]



não, 

não tenho nada

: nem blog nem página 

nem essas coisas modernas.

tenho apenas um amontoado de palavras

nos guardanapos que roubo dos bares.

não, 

não tenho nada

: não tenho canal no youtube

nem nada.

tenho só um amontoado de palavras 

alinhavadas nas beiradas 

dos livros que leio

cotidianamente

incansavelmente.

não, 

não tenho nada

: nem leitores nem admiradores

não tenho programa de tv

não tenho nada.

tenho mesmo só as palavras

e um caos

e os livros que leio

e um punhado de amigos 

e um gato

e uma flor no abismo

mais nada.








[no coração do mundo]



no coração do mundo batem muitos sonhos

e segredos

: caixa de pandora a guardar tolices

no coração do mundo transbordam muitos anseios

e desejos

: fios de ariadne a tecer ideias

no coração do mundo latejam muitas artérias

e medos

: fúria de zeus ao criar o homem.







[luto]



hoje,

desescrevi o poema

desvivi os meses

desenterrei os mortos.

hoje,

desamanheci o dia

desacreditei nos homens

desatei os elos.

hoje,

desmontei a casa

destranquei as portas

desorientei os ventos.

hoje,

desanoiteci nas sombras

descabelei as ideias

desabei em lágrimas

à procura da esperança

: desaparecida.







[amor]



sei que é possível transcender pequenezas

transcendo o azul-griverdoso dos seus olhos baços

e sigo

[lutando]

a vida é mais que existência

a vida, meu amor,

é resistência.







[corpo-cicatriz]



meu corpo-mundo é conquista diária,

ponte entre a natureza e o caos:

desejo-essência-sofrimento-luta.

[resistência]

moro em cada corte do caminho:

no meu ventre, nos meus seios,

no meu assoalho pélvico,

nas minhas entranhas, na minha voz.

meu corpo, cartografia de quereres,

é um mapa,

paisagem milimetricamente desenhada,

cicatrizes que dão a exata direção:

rios e montanhas e

mares e oceanos e

planícies verdejantes e

areias quentes e

vales profundos para sempre tatuados por um bisturi,

para estancar minha dor

[não estancou].

meu corpo-cartográfico hoje é pele suada por seus sais,

palmilhado por suas mãos generosas, calmas.

corpo demarcado por seus beijos e

guarnecido por suas palavras macias, amáveis.

[corpo-multidão].







roupa sem corpo

[ou releitura]



hoje,

o melhor corpo para minha roupa

é aquele descoberto

das exigências

que o tempo traz.







das mortes que me ressuscitam

[digo num fôlego]



não quero morrer demais esses dias

eu quero viver esses dias

eu não quero morrer demais esses dias

porque já morri outros dias sem parar

eu morri

então eu não quero mais morrer tanto

só um pouco

porque não tem jeito de não morrer

mas eu quero morrer sem dor

assim igual passarinho que fecha

os olhos e morre na floresta

na gaiola não

na gaiola eu não quero morrer

mas se precisar

e não tiver jeito eu morro também nela

eu morro

porque às vezes é necessário morrer

para nascer outra

então eu morro para algumas pessoas e

nasço pra mim

noutras horas eu acabo morrendo

pra mim também

porque na minha tristeza eu não consigo viver

então eu desisto da vida por algumas horas

ou minutos ou segundos e

me mergulho inteira no oceano-azul-das-palavras

para não ter que ver a cara da morte

que debocha das vidas brasileiras e

aí eu viro pra o lado esquerdo e

ouço o meu coração bater forte

ticum-ticum-ticum e

não consigo dormir e

eu não durmo porque se eu fechar os olhos e

os ouvidos eu nunca mais renasço e eu

eu não sou dessas que desistem fácil

porque eu nasço todos os dias

desde que nasci a primeira vez

numa madrugada fria

do dia 28 de junho

em pleno inverno no brasil

quando choviam balas de fuzis e

todos gritavam nas ruas

eu nasci assustada berrando perguntando

pra minha mãe o que significava aquilo e

ela me dizia

"é a barbárie da ditadura militar

[minha filha]

e você será uma mulher resistente

[minha filha]

uma grande mulher"

então o meu pai chegou no hospital

pra me conhecer

com as duas mãos queimadas e

desempregado porque os militares invadiram

a fábrica nacional de motores

onde ele trabalhava e eu

eu nunca mais parei de lutar e

de nascer e

de morrer e

de escrever e

hoje

hoje eu nasci de novo

pra continuar na luta

contra a morte

que assola o brasil.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Helena Arruda nasceu em Petrópolis/RJ. É mestre e doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ. Poeta, contista, ensaísta, é autora dos livros Interditos — poemas (Batel, 2014); Mulheres na ficção brasileira — ensaios (Batel, 2016); Corpos-sentidos — poemas (Patuá, 2020); Identidades em fuga: personagens-escritoras no romance brasileiro do século XXI — crítica literária (Urutau, 2021). Possui trabalhos publicados em diversas antologias e revistas literárias. Suas publicações mais recentes constam dos livros Ficção e travessias — ensaios (7Letras, 2019), Ato Poético — poemas antifascistas (Oficina Raquel, 2020) e das antologias: Ruínas (Patuá, 2020); Elas e as Letras: insubmissão ancestral (In-Finita, Lisboa, 2021); As mulheres poetas na literatura brasileira (Arribaçã, 2021). Finalista do Prêmio Off-Flip de Literatura (2021), no gênero poesia, e semifinalista, no gênero crônica, escreve quinzenalmente para a coluna Flauta Vertebrada, do jornal eletrônico O Partisano, e é membro do corpo editorial da Revista Topus — espaço, literatura e outras artes, da UFTM.