©steve buissinne
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Desde que soubera da fuga do bandido que ajudara a prender, não tivera mais sossego. Morando sozinha, assustava-se à noite com qualquer ruído que não conseguia identificar a origem. Contava apenas com a ajuda divina, uma vez que a polícia não a atendia mais, de tanto que já lhes havia importunado com seus alarmes infundados. No trabalho, constantemente nervosa, já não rendia o mesmo. Os patrões pacientemente esperavam que essa situação de medo e estresse passasse, para que a rotina do serviço voltasse ao normal. Porém, a cada dia estavam mais propensos a dispensar Maristela.

Numa noite de chuva, com ventos que produziam sons lamentosos e aterrorizantes, Maristela não conseguia dormir. O medo a fazia reconhecer em cada estalido o passo daquele cuja face ameaçadora não lhe saía da memória. Para tentar se acalmar, apanhou as duas almofadas da cadeira e colocou-as no chão diante do pequeno altar, como era costume fazer quando queria rezar. Ajoelhou-se. Mal se acomodou, o vento soprou tão forte, que a fez levantar-se num salto, apavorada, tremendo e gritando sem controle.

A situação de total desgaste e tensão nervosa de Maristela a tinha levado a declarar aos amigos que pensava até em se matar. Implorava a eles que tentassem trocar de papel com ela, que tentassem viver na pele dela por alguns minutos, para entender o que significava o pavor de se sentir seguida o tempo inteiro, apavorada com qualquer telefonema cujo interlocutor alegasse engano, e tão desequilibrada emocionalmente que era incapaz de não se assustar quando alguém se dirigia a ela na rua ou simplesmente a tocava com o único intuito de pedir licença para passar, no ônibus. Queria que entendessem que, a viver assim, a morte seria um verdadeiro alívio.

Naquela noite, chamou de novo a polícia assim que a luz faltou inesperadamente. Antes de ligar, tinha procurado aflita por fósforos e velas e quase entrou em estado de choque ao verificar que não estavam no local em que habitualmente os guardava. Até que se lembrou de tê-los acomodado na mesinha de cabeceira, justamente para ficar mais fácil de localizá-los em caso de uma emergência. Depois de acender uma vela e telefonar, encolheu-se na cama sob os cobertores, torcendo para que os soldados chegassem logo.

Quando escutou a maçaneta da porta da frente sendo forçada, soltou, histérica, um agudo grito de socorro. Mas ao ouvir a voz pedindo que se acalmasse e dizendo tratar-se da polícia, quase voou do meio das cobertas para receber a proteção tão aguardada. Muitas horas depois, quando a polícia de fato chegou, encontrou a porta aberta sem nenhum sinal de arrombamento. Maristela jazia ajoelhada, caída sobre o altar. Segurava entre as mãos uma arma apontada contra o peito e tinha ainda os dois polegares em posição de estar pressionando o gatilho. Ninguém jamais teve a menor dúvida de que o pavor e a amargura haviam, por fim, destruído a figura frágil e sensível de Maristela.

 

 

 

 

março, 2021

 

 

 

 

 

Nota da editora: essa crônica foi publicada no livro Teatro dos Esquecidos, de Guttemberg Guarabyra (Londrina/PR: Thoth, 2020, 242 págs.). Clique aqui para a versão em papel. Clique aqui para a versão em e-book.