©bishnu sarangi
 

 

 

 
 

 

 

 

O VÔMITO



Disse tudo que era para dizer num vômito só. As palavras ainda reverberaram por um tempo, dentro da boca, como se um resto amargo de bile aderisse às suas mucosas. E foi de tal impedância aquilo que ela mesma se assustou com suas palavras firmes e diretas. Precisava dizer, sua vida era uma represa rachando aos poucos. Precisava, sim, dessa substância espessa que emergia num impulso, dessa aspereza de lixa. Lixas precedem a combustão. E foi isso. Tais palavras, repetia-as em um mantra agora, no silêncio, para não mais recuar. O ar estava elétrico. Naquele instante, viu que ele, na estática de um gesto qualquer que não oscilava mais, parecia pequeno, assombrosamente pequeno. Ele era isso agora: um mundo que murchava diante de si. E como qualquer coisa que se vê frágil por sua insignificância, ele se viu entre partir e evaporar-se. Partiu.







ESTRANHOS, NA INTIMIDADE



O primeiro encontro foi entre dois estranhos. Éramos dois estranhos tentando um entendimento. Estava nervosa para começar uma fala qualquer que criasse um primeiro fio de intimidade real. Mas me calei. Não sei, poderia ter dito algo amável, mas só pensava em um mundo novo que tinha despencado em cima de minha cabeça nesses últimos meses. Ele também não esboçou nenhuma reação. Pudera. Era também novato nessa situação. Ele não era bonito: tinha um rosto pequeno, avermelhado, olhos meio inchados. Nosso silêncio nos acobertava do resto do espaço em volta. E era isso, esse poder de nos tornar dois seres estranhos neste espaço onde a quietude era parte do jogo e, também, nosso desarme. Então, foi assim que se deu a coisa: sem palavras. Percebi que a intimidade já estava ali nos esperando, mesmo antes de qualquer coisa. Puxei-o para mim. Dei-lhe o peito.







ESCULTURAS



Ele parecia uma escultura de ferro de Giacometti. Magro, esguio, anguloso. Dava uma sensação de que estava derretendo. Falava de forma pausada e, enquanto falava, ajeitava meticulosamente os óculos no nariz. Era o diretor da escola e tentava estabelecer contato comigo, uma garota de 16 anos, por meio de uma linguagem alienígena de um senhor de 60. Aquela linguagem que recupera sua juventude e seus feitos morais, para explicar sobre o meu comportamento em sala de aula. Sim, eu era o ponto fora da curva que gostava de arte e de jogar futebol com os meninos. E não foi surpresa quando desloquei o nariz de um deles com um soco, quando ele me provocou dizendo que mulheres só serviam para trepar. Agora estou aqui na sala da diretoria ouvindo um sermão edificante. Uma semana de suspensão. Que nome agradável esse: suspensão! É como se eu flutuasse e saísse pela janela. Vai ver, sou isso mesmo: uma partícula de pó que sai da pedra desbastada por um cinzel e flutua, para não se moldar.







A MARRETA DA REALIDADE



A ausência. Esse veto. Essa marreta da realidade a me acertar a cabeça esperançosa. Abro a porta do quarto pensando em achá-lo ali, na cama, assistindo aos noticiários, reclamando do presidente, reclamando do seu time, reclamando do frio. Ou apenas reclamando para ouvir a própria voz, como um mantra de vida. Abro a porta. Nada. Ele não está ali. Ausência. A realidade-marreta. O cérebro ainda não se acostumou à sua morte. A cama continua ali: na sua ausência, uma ausência de utilidade. Nem me despedir pude. Enterrado às pressas. O vírus... Um caixão fechado. Uma cama sem gente. Não sei para quem eu grito. A inutilidade de um grito que não vai ecoar. Que vai morrer numa cama arrumada, sem ele. Sem suas expressões ranzinzas, divertidas, sarcásticas. Mesmo assim abro a porta, na expectativa. Não há ele. Só ausência. Só marreta.







O ÍNDIO DO GRUPO



Isso foi lá atrás. Eu tinha um bigode que escorria pelos cantos da boca e descia até o queixo. Quando sorria, os amigos diziam que era uma trave de futebol preta e uma barreira de dentes. Naquele tempo, fazia parte de um grupo musical que imitava o Village People. Eu era o sujeito do casaco de couro preto. Os cabelos ralos e brancos e o rosto escanhoado do médico que sou agora não combinam em nada com aquele meu passado. Mas hoje atendi aquele que era o nosso índio da banda. Reconheci-o de cara. Está bem debilitado, mas a fisionomia se manteve pouco mudada. Seu prontuário é de alguém que está indo embora. Ele, no entanto, quando me vê, aperta com dificuldade seus olhos e me diz, numa voz bem fraca: "Young man". Eu sorrio, ele se lembrou de mim. Então, respondo: "there's no need to feel down". A enfermeira nos olha, de longe, e acha que eu estou testando os reflexos do senhor de cadeira de rodas. Mas estamos — lívidos, sobreviventes — coreografando. It's fun to stay at the YMCA.







PRO GEORGES PEREC



O outro morreu e ele morreu junto. Nem é desse modo como você pensou. Foi só o desespero que o consumiu, porque tudo se foi no outro que o deixou. Nem sequer pretendeu ler o livro dele de novo. Seu nome impresso no começo do livro, que o outro lhe dedicou como um gesto terno. Por isso, decidiu: retirou com um estilete o símbolo do início do nome do outro, embutido no seu notebook. E ninguém, depois disso, escreveu nele nenhum texto sequer com ess letr.



[Contos de O livro de águas, primeiro volume de A trilogia dos instantes]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Gladson Dalmonech nasceu em 1964, no Espírito Santo. É mestre em estudos literários e professor universitário. Foi o ganhador do II Concurso Literário da Playboy, em 1998. Autor de A trilogia dos instantes, no prelo.