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Minha casa tinha um permanente
estrépito de pássaros. Ademais,
a mãe gostava de brados retumbantes.
O pai sempre se fingia ausente e a
criançada morria de medo de ser engaiolada
no desejo dele, no ódio dela. Mas
não sabia dar nome ao medo. Então, mijava na cama.
Pássaros presos comem maxixe e dormem em pé.
Para meus ouvidos, nunca um pássaro de gaiola fez canção.
Quando queria, o pai cobria as gaiolas com panos.
Assim, silenciava o estrépito.
Eu ouvia, então, o pássaro preso se debater em meu peito.
Um dia, fugiu pela janela.
§
Estou sem alma, disse o homem
À única pessoa próxima
Estou sem alma, disse o homem
E cuspiu sangue
No copo, para não dar mais trabalho
À única pessoa próxima
Depois, entrou na padaria
Não bebeu, não cantou, não dançou
Tombou no chão e virou um pacote
Incômodo, rígido, estúpido
Coberto com saco plástico
Atrapalhando o cheirinho de pão fresco
§
O calor de nossas cabeças
batendo na parede do século
sem paciência
me fez lembrar
não conseguimos
ficar parados
como um gato lânguido
não sabemos o silêncio
e o autoafeto
ao invés grasnamos
nos tímpanos uns dos outros
ensurdecemos a cidade
com o grito metálico
como o esboço remoto de um bisturi
esquecido na nuca
um raio x vertebrado em slow motion
de uma ruína
todos os séculos foram iniciados
por um acaso que não quis ser deus
nada vem de nós
[Poemas inéditos]
§
a conversa a toda
e eu insisto em olhar as traças na parede
a moça ao lado tem manchas na pele
um vermelho fosco de nervoso
a porta range uma alegria sem carne
as pessoas bebem muita água
mas não esquecem os olhos atrás das janelas
as pessoas não conhecem Rimbaud
nem vão partir pra Aden, Abissínia
e sentar sobre o alpendre
ficarão nesta sala perto do eternamente
em torno da mesa
de qualquer ponto da sala, não são visíveis todas as janelas
mas todos sabem dos olhos lá fora
as pessoas não conhecem Bandeira
nem vão embora pra Pasárgada
com os olhos lá fora, não vão a lugar algum
no íntimo, sua vida é maltrapilha e só
conversam a toda
§
àquelas horas, na rua,
nada de anjo da guarda
só a fumaça, neblina ensaiada
ela era assim: cabelo chanel, tragadas profundas
comentários esparsos.
sobre o garçom jogando água na calçada:
garçom conservador devia ser proibido.
o passado bate muito à porta ultimamente.
sobre o amor:
estátuas de farda na praça pública
andam matando todo amor.
Sobre a cachaça:
trôpego, mas de pé
é o futuro da humanidade.
Há poesia na praça, sussurra:
sem as estátuas, não conheço o macio
sem as mortes, não alcanço as estrelas.
Ela vai embora devagar.
Os olhares aniquilam sutilmente
a dobra da esquina, como tiros na nuca.
§
ela tem uma cabeça estranha
cheia de medo e paralisia
sapato virado, ferro ligado, pé direito, não
é medo de gente que tem verdades
que tem dinheiro, beleza, sucesso
ela vê e treme
há uma dormência, um átimo
só fica ela em ruína
desavisada no vão das portas
que sempre lhe batem na cara
§
Hoje me livro da pele
Essa armadura atávica
Hoje me livro da fala
Essa moeda de troca
Hoje me livro do medo
Essa guilhotina das ideias
Pensava ela
Enquanto rodava em círculos
No próprio quarto
Depois de socar almofadas
E ler aquele bestseller que ensina tudo sobre amor próprio
§
Não é o relógio que te acorda
Não se dorme mais 8 horas por noite
Os sonhos são esquecidos a cada manhã
Todo mundo rouba o tempo do outro
Ela vigia o olhar do amado a cada crepúsculo
A vigília é um caracol em seu labirinto
O tempo gruda no corpo que queria mais da vida
É nossa anatomia, pedra e abismo
Somos o homem que morre
Pensando que fugiu da cela
Que já lhe habita o osso
Pequeno poema para emudecer o amor
vez por outra, cansada de seu desprezo,
eu decido aniquilar, como o Deus insano
faz.
a crueldade necessária para esmagar uma barata,
uma borboleta, seu sorriso deslumbrado de si
é a mesma. o quase esquecimento é que liberta.
pequenas ações, como um bicho fascinado
se aprendesse as letras. eu tão em mim.
pequeno coração, cetim, punhal, foto manchada de traça.
esta terra é nua e devastada. é ermo o amor. vez por outra
o bardo coração não canta. o silêncio gasta-me as horas livres.
só sei de mim, sem a suposição
de semelhanças ao fundo.
Saudade
Era dela o coelho misteriosamente doente
também dela o desvio de rota do avião
outro país, queda e destroços
e os pedaços metálicos de relógios sempre
em seu caminho
Era dela ainda o choro atrás da árvore de copa
mais frondosa
e o escárnio da rainha na memória
Era dela o dano maior
e o quase epitáfio na escuridão
Mas mesmo assim ela sentia saudade
esse meio termo entre flores, pássaros
e árvores em convulsão
§
sonhei que via você num outdoor, nas redes sociais
e em toda parte
tal um ídolo imbatível
um deus do tempo dos deuses perenes
um pai que me livrava do abandono
você perfeito, de mármore
só eu sabia do cerne humano
dos dentes gastos de tanto arrancar a jugular
da vida e sorrir dentifrício
§
Um truque é o olhar de viés
A fala pausada sobre amor
Um truque é esquecer por dois minutos
O garoto morto pela polícia
Um truque é uma perna mecânica
E a melodia dos pardais no fio teso
Um truque é procurar na página do meio
Daquele romance velho a mensagem do dia
Um truque é não morrer no esconde-esconde
Mesmo sem respirar e com medo do escuro
[Poemas do livro Rotina dos Ossos. Cousa, 2019]
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