§



ela dizia o poema

ante a esperança de que

ele, o poema, nunca

findasse. como se cada

palavra, tal qual aquele

osso quebrado, furasse

a pele escassa das frases


ela dizia o poema

e o engolia. outro corpo

ruía enquanto gestava

o gosto esquecido do

verso. ela comia

o poema fora da boca







§



invento a pergunta mais impossível

a fim de me apoderar dos verões

nos corpos suados. como um leão

que se apega às presas e ama com

sangue nos dentes, percebo a violência


no escuro das ruas. entre as calçadas

exerço a ilusão de querer de volta

os restos de pele dispersos nas

camas onde deitei. ergue-se um

muro feito desde os nossos passados


membros, cabeça, o dorso imerso no

cultivo de mãos que seguram em vão

o percurso de um salto dado às cegas

os pés desenham o descompasso. cria-se

a pergunta fundamental, inscrita


no desfecho da voz que esquece seu

itinerário. os caminhos se cruzam

naquele que se permite chegar

ao próprio silêncio e nele ficar.

invento uma pergunta que me faça


querer a plena incoerência entre

bocas narizes pernas aprendizes.







1.



dizer um poema

invoca o silente

sentido


dizer um poema,

da mesma maneira

como se trava a

luta contra a linha

quebrada da frase


dizer um poema

como conceber

um ato incendiário




2.



o fogo torce a

semântica das

formas. molda a luz,

escreve o calor


mãos se aquecem

e tecem em conjunto

o sagrado


os verbos ardem

como a estrela

irrompida em mundo




[Do livro A forma fugaz das mãos. Patuá, 2021]




§



vinde a mim os que têm sede

de desertos. que dançam com fome

por terra nos pés. os corpos

penitentes de prazer se acheguem,

que sua dor seja largada


à beira de uma chamada não 

atendida. a metafísica

das manhãs colabora com a

leviandade das janelas

devo esperar só mais uma hora


para encerrar com a demanda

pelas correntes, embelezadas

nos stories santos de

todos os dias. vinde a mim os 

que amam sem saber o


sono dos corpos cansados ou

o destino dos atrasos

a quase um segundo do colapso. 

ponham fim naquele post 

programado para o horário nobre


das redes. a espera é grande 

e o sorriso borrado daquela 

selfie mal tirada benze 

a tragédia de quem se devora 

um pouco antes das fotos







§



para aqueles que não sentem na carne 

o pesar das horas distantes quando

sempre estão longe. para os que se esquecem

de dizer a penúltima palavra

por acreditarem que o amanhã

sempre virá. para os que hoje não

ocupam o agora e acreditam no

adeus incompleto das mãos. para o

tamanho escasso das sombras quando o

dia termina sem que haja sol.

para a noite que não abriga a lua, 

e mistério seria apenas uma

metáfora ante a recusa das

nomeações. para quem acompanha

sem prestar atenção nos braços dados.

para os filmes que ainda buscam um

final feliz. para os finais felizes

que não existem, nem nos filmes. para

o enterro ausente de corpo e quem chora

sem saber o porquê. para quem é

despedida, ainda que alegre esteja

nos próprios sumiços. para o lugar-

comum dos erros porque somos sua

inegável revisita. não há

um dia, sequer instante, em que se

brinde pelos chavões que nos mantêm

de pé. da linguagem vêm as rotinas

e figuras reprisadas na estreia.

e assim nos vestimos, ao aprendermos

o amém de todas as horas e santos,

sem ideia, causa nem quando para

o alívio de algo sem valor... nem

o estranho desejo por tantos anos







febre



flagrar com as próprias mãos o tremor 

da pele quando perto do susto. 

o ritmo acelerado do 

coração agarra forte o sangue 

antes de ele maturar o corte. 

o calor do corpo percebe o 

delírio na composição das

pilastras que traduzem o céu

segundo o suor drenado da 

epiderme. diz agora o que 

falta para se provar do medo 

por dentro da febre. as mãos são a 

medida exata de quanto se 

tem de dúvida no risco de uma 

decisão, por mais solar que seja.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Fábio Pessanha é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em livros e periódicos sobre sua pesquisa a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. Ministrou presencialmente cursos, rodas de leituras poéticas e oficinas de poesia em diversos lugares, tais como: Faculdade de Letras da UFRJ, Biblioteca Parque de Niterói, COART/UERJ, Atelier Casa 4 de Arte e Filosofia. Durante a pandemia, tem ministrado oficinas online de poesia. É autor de A forma fugaz das mãos (Patuá, 2021), A hermenêutica do mar — um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e diálogo: caminhos de pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Assina a coluna palavra: alucinógeno na revista Vício Velho, com publicações sobre o poema e suas performances dialogantes. Tem poemas publicados em diversas revistas eletrônicas.