©sguimas
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

No quarto do hospital, Stela acorda de um sono profundo. Quanto tempo teria dormido? Dias, horas? Aperta a campainha ao lado da cama, para chamar alguém. Nunca tinha visto um quarto hospitalar de dimensões tão reduzidas e tampouco com paredes descascadas. Que espelunca era aquela? Onde havia se metido, afinal?

Minutos — que lhe parecem séculos — transcorrem e ninguém aparece. Ergue os braços, apalpa lentamente a cabeça e percebe que há sangue seco. O corpo lhe dói tanto que parece ter sido espremido no tipiti do sítio da tia. Pernas, ombros, cabeça, todos os membros do corpo a incomodam. Sente uma espécie de tontura, quase desfalecimento. E sede, muita sede.

De repente, lembra a cena. Tinha sido à tardinha, não sabe se na véspera ou antevéspera. Então, revê o rosto da moça furiosa que a surrou e a covardia do dono da casa, incapaz de contê-la, de impedir aquela malfadada atitude. Tudo aconteceu rapidamente e de maneira tão inesperada que não conseguiu reagir. Quem seria aquela moça e que tipo de vínculo ela manteria com Saulo? Stela tinha dito apenas uma frase quando a pancadaria começou. Revê o rosto do homem lívido, tentando inutilmente puxar a moça pelos braços.

Viera de longe para ouvir explicações do homem que há quatro meses tinha deixado de responder às suas mensagens. Tinha se esforçado para se conter, não o procurar, mas quanto mais se empenhava mais pensava na figura ambígua, que a deixou no vácuo sem palavra alguma. Inicialmente, tentou esquecer aquilo, distrair-se com outros assuntos, dedicar-se aos seus clientes, sem êxito.

Durante aquele período, quase foi consumida pela humilhação. Justo ela, coach em comportamento masculino nas relações amorosas, dona de um canal com milhares de inscritos, cujos vídeos estavam entre os mais assistidos do país! Stela jamais esperou viver algo nem de longe parecido. A bambambã que ensinava as mulheres como fazer para atrair e segurar namorados tinha entrado numa roubada sem tamanho. Até aí, com grande esforço conseguiu — sabe Deus como — fingir entusiasmo na gravação dos seus vídeos e responder com segurança à extensa relação de dúvidas das mulheres. Continuou esclarecendo, com sua decantada experiência, o significado e a importância do contato zero. Na vida privada, contudo, sua ansiedade jamais permitiu que o utilizasse. Quando sentia vontade de falar, disparava e dizia o que lhe desse na telha. Seus ex-namorados sabiam disso, com certeza.

Agora, depois de ter levado uma surra de uma desconhecida sem entender o motivo, não faz ideia de como vai continuar a trabalhar. E — o mais grave — foi arrastada nesse lodo, nessa enxurrada de baixo nível por causa de um homem ambíguo e reticente. Tinha feito de tudo para segurar o ímpeto de procurá-lo, mas dessa vez não deu conta de deixar barato. Fez exatamente o contrário do que pregava diariamente nas redes sociais: comprou as passagens quase sem pensar e, num ímpeto, viajou mais de dois mil quilômetros para obter uma explicação e entender os fatos. Era obcecada pela verdade. Detetive teria sido uma profissão mais adequada para ela, mas as circunstâncias a fizeram trilhar outro caminho.

Como demoram a atender, nesse hospital provinciano! Pessoal lento, cruzes. Ninguém aparece e Stela sente vontade de beber um rio inteiro, de tanta sede. Enquanto espera, tenta reconstituir os fatos. Havia chegado ao apartamento de Saulo quase na hora do almoço e dera de cara com uma moça que, pela idade e comprimento da bermuda, parecia ser sua neta. Logo depois que ela perguntou por ele, começou a pancadaria. Lembra o olhar da moça, lançando setas e espadas. Saulo tentou apartar as duas, falando baixo, provavelmente por medo de que a vizinhança ouvisse. Stela protegeu os seios com os braços, quando a moça empunhou a vassoura. E depois caiu. Daquele momento em diante não viu nada mais. Quem a teria levado ao hospital? Saulo? Ou sua covardia o fizera apenas chamar o corpo de bombeiros, para não mostrar a cara? Mas não deveria ter acionado a polícia?

As perguntas vão e vêm, incessantemente. Em lugares pequenos as coisas são mais fáceis de ocultar, reflete. E quem se atreveria a contestar as palavras de Saulo, o ex-prefeito da cidade, dono da maior empresa da região? Ninguém, provavelmente. O que mais deseja é sair dali correndo, pegar um avião e voltar a casa. Quanto mais depressa puder se esticar na sua cama, melhor. Ah, a sua cama. Sonha em ficar deitada pelo menos uns dois dias, para se refazer e voltar a trabalhar. 

Finalmente um médico chega, todo sorrisos, procurando animá-la: então, dona Stela, como se sente? O dr. Saulo trouxe a senhora aqui hoje, e nos contou o horrível episódio da turminha de ladrões. Que coisa, hein? Esses criminosos não têm limites mesmo. Levaram a carteira de dinheiro, mas deixaram seus documentos e os cartões de crédito perto do local onde foi encontrada, imagine! Não consigo entender o motivo de a terem machucado tanto. Já examinei superficialmente os ferimentos, e creio que não há ossos quebrados. Mas vamos fazer as radiografias agora. Se tudo estiver bem, amanhã mesmo terá alta, provavelmente à noitinha. Já soube, pelo dr. Saulo, que a senhora mora muito longe daqui e é muito ocupada. Ele disse que há um voo noturno e iria providenciar sua passagem. Agora, trate de se alimentar primeiro. Vou pedir que lhe tragam comida, depois faremos os exames necessários.

O médico sai pisando macio, com seus sapatos meio sujos de poeira. Stela gostaria de ver seu rosto no espelho, mas não tem coragem de abrir a bolsa, deixada ao lado da cama. Deve estar horrível. Precisa pensar rápido e criar uma história que justifique os hematomas, os cortes no corpo e as inchações. Sente o rosto quase furando a pele, tem a sensação de que ele não cabe dentro dela. Resolve aproveitar a mentira de Saulo. Isso mesmo, dirá que foi atacada por um grupo de ladrões. Mas onde? Se seus clientes imaginarem que está visitando um lugar perdido no meio do nada, tudo vai parecer muito suspeito.

Sabe que não tem de se preocupar com a conta do hospital. Saulo já deve ter providenciado tudo. O namorado infiel, reticente e ambíguo é rico e aparentemente sua reputação na cidade é irrepreensível. Quando pensa na reputação de Saulo, tem vontade de gargalhar. Por que ele não dissera nada sobre a jovem? Se soubesse que era comprometido, jamais teria ido ao seu encontro. Aliás, ele mesmo tinha dito duas vezes que vivia só. Que tola fora, pensa. Se ela não lhe perguntou e ele repetiu essa frase, deveria ser justamente o oposto.

Depois de passar uma noite péssima, com dores no corpo todo apesar dos remédios, finalmente Stela recebe alta. Quase correndo, deixa o hospital e pega um táxi na esquina. Deseja apenas sair, fugir dali o mais rápido possível, desaparecer no ar. Dorme o voo todo, e de novo está na sua casa, no aconchego da sua cama, enrolada no cobertor verde.

Pede à secretária para desmarcar os atendimentos. Precisa de no mínimo dois dias para se recompor, tentar se livrar das manchas roxas nos braços e dos inchaços do rosto, pondo compressas e mais compressas geladas sobre a pele. Durante o intervalo forçado, evita pensar em Saulo. Agora, dá prioridade à aparência, pois não pode ficar três dias sem gravar os vídeos e lives que alimentam a sua clientela.

No terceiro dia, depois de caprichar na maquiagem, escolhe um vestido rosa pêssego e põe os brincos de quartzo rosa, a pedra do amor. E inicia a gravação da live detalhando a importância do contato zero, que deve durar no mínimo uma semana e no máximo três meses. Isso é fundamental, diz enfaticamente. Só assim vocês recuperarão seus pares depois de um término ou afastamento. Vocês têm de sair de cena para que sintam a falta. Lembrem-se, este é um dos principais canais do país sobre relacionamento. Aqui todas podem descobrir os mistérios das almas masculinas. Resolvi homenageá-las usando hoje a gema do amor. É para isso que o canal existe, para lhes dar dicas sobre amor verdadeiro, legítimo, abençoado pelo Arcanjo Miguel.

A chuva de comentários começa. Uma das participantes lhe pergunta o que fez para obter uma aparência tão descansada. Stela, minha estrela — escreve outra — você está mais bonita do que nunca. Esteve viajando? Aposto que foi a um passeio. Sim, responde. Aceitei o convite de um casal de amigos e passei três dias numa chácara deslumbrante, onde há um jardim maravilhoso, cheio de rosas-silvestres. Um paraíso, minhas queridas.

Ao se despedir, mostra os lindos dentes — felizmente, não foram quebrados pela moça furiosa —, apresentando o seu sorriso típico, considerado por todos muito natural. E logo ele desaparece, pois precisa começar a digestão, que sabe ser lenta, do enorme sapo que, por descuido, foi obrigada a engolir.

 

 

 

 

 

setembro, 2021