©gerd altmann 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Por incrível que pareça, este é o meu primeiro texto de 2021, excetuando-se uma frase aqui ou acolá, em redes sociais. Tive uma séria infeção no dedo indicador da mão esquerda, que deu pano para manga. Foi necessário recorrer a médicos de especialidades diferentes e fazer, além de exames de sangue, ecografia e ressonância magnética da mão. Omitirei os detalhes, dado o tamanho do caso; só acrescento que, das seis infecções nos dedos que já tive, essa foi a mais misteriosa e preocupante. Fiquei sem poder escrever durante dois meses e meio em pleno isolamento da pandemia, com dores tão fortes que afetaram minha concentração para a leitura. Trabalhadora compulsiva, me cobrei o tempo todo e me senti extremamente mal.

Cansada dos noticiários entristecedores e das minisséries televisivas, sem muita paciência para o Facebook, a única rede social em que participo ativamente, comecei a pensar sobre o que fazer durante os compridos dias do isolamento forçado. Queria uma atividade que realmente me interessasse, como a aquisição de novos conhecimentos. Foi aí que me lembrei de um cursinho rápido de tarô egípcio que fiz na juventude. Gostei muito, na época, mas estava ocupada demais com a carreira profissional e não pude me dedicar como desejava.

Há vídeos no Youtube realmente interessantes, o que descobri quando fiz pesquisa sobre a personalidade do perverso narcisista, para escrever Nenhum espelho reflete seu rosto, romance publicado em 2019. Muita gente não reconhece as qualidades dos youtubers, postura a meu ver inadequada. Há que se separar o joio do trigo, encontra-se de tudo, mas existem profissionais muito sérios atuando e ajudando pessoas de maneiras inimagináveis.

Resolvi assistir aos canais de tarô, e me espantei com o número de inscritos — em alguns casos superior a trezentos mil. Quase todos os tarólogos fazem consultas individuais online, mas ao contrário do que se possa pensar, esses vídeos não são apenas cartões de visita ou técnica de marketing. Os temas são variados e o predileto do público é o amoroso. As tiragens funcionam assim: o tarólogo apresenta geralmente três opções, às vezes quatro, distribuindo as cartas em montinhos, cada um deles representado por uma gema preciosa. Os consulentes escolhem a sua pedra e assistem à "sua tiragem". Como as energias são muitas, pois cada montinho é destinado a milhares de pessoas, cabe a cada uma selecionar o que julgar pertinente para a sua situação.

Impressionou-me o alto nível de alguns profissionais, que têm audiência fidelizada. As linhas de trabalho são diferentes, há tarólogos vinculados a religiões afro-brasileiras, mas a maioria é composta por profissionais cujo compromisso é apenas com a arte milenar — os chamados "jogos de adivinhação". Percebi uma mudança de atitude, em relação ao passado: ao iniciar o vídeo, todos, sem exceção, explicam que os oráculos não preveem o futuro de ninguém, apenas captam e mostram as probabilidades e energias disponíveis no momento, pois as pessoas estão em constante mudança e suas ações sempre dependerão do seu livre arbítrio. Ressaltam, também, tratar-se de uma tiragem coletiva. Percebe-se, nessas explicações, uma tentativa de desmitificar o tarô e outros tipos de oráculos, afugentando cada vez mais a imagem da pitonisa ou da vidente com bola de cristal, na linha da personagem de "A cartomante", conto magistral de Machado de Assis.

Para ver até que ponto essas tiragens "funcionam", fiz o que os consulentes não devem fazer: escolhi uma única situação problema e visitei vários canais, assistindo a dezenas de vídeos e recebendo respostas diferentes, como seria de se supor, mas com muitos elementos comuns. Estou convencida de que o tarô, o baralho cigano e outros constituem o que se pode chamar de uma semiótica. Temos sistemas de códigos, cada carta contém significantes e significados e estes, combinados, levam a um resultado X ou Y. Para analisar os elementos que estão em jogo não é necessário ter vidência ou poderes especiais e sim uma intuição apurada, aliada ao conhecimento e sobretudo à prática obtida nos atendimentos. A própria intuição se desenvolve à medida que o número de sessões aumenta.

Há tarólogos que, além de entenderem do riscado, são extremamente engraçados. Um deles, nordestino, vinculado a uma religião afro-brasileira, cujas tiragens são muito assertivas, inventa frases e bordões durante as leituras, e ontem veio com uma tirada notável, ao descrever, rindo, como estariam os ex-parceiros/as dos/das consulentes: fulano/fulana está "no seu momento três de espadas", a carta que traz a terrível e temida imagem do coração partido.

Como em quase todas as profissões e ofícios, há jargões especializados. Fiz um apanhado geral e listei os mais comuns: as "crenças limitantes" — que sempre me levam a pensar de que ponto de vista são "limitantes", limitam de quê e para quem são mesmo perniciosas. Para o consulente? Para o tarólogo? "Zona de conforto" não poderia ficar de fora; o próprio arcano maior "O enforcado" ou "O dependurado", carta tenebrosa cujo significado é a impotência absoluta de alguém naquele momento específico, pode representar "zona de conforto" para quem está aterrorizado diante de uma situação. Quando as cartas são fortes, alguns se referem ao conjunto como "é babado". A pessoa sobre a qual se fala, objeto da leitura, é usualmente chamada de "ser de luz" — mesmo quando comete atos obscuros ou absolutamente sem noção. Quanto aos conceitos, me deparei com a expressão "chama gêmea", que não significa o mesmo que "alma gêmea".

É curioso notar que viúvos e viúvas são completamente invisíveis. Tarólogos, de modo geral, só se referem a divorciados, ex-parceiros, ex-companheiros. Até os crushes" e "ficantes" são mencionados nas leituras. Mas é como se todos os amores passados estivessem vivos. Não há maridos/esposas mortos/mortas. Deve existir uma razão para isso, talvez a energia dos mortos não apareça na mesa do jogo. Realmente, não sei o motivo.

Observando os jogos, não é difícil identificar a origem de expressões como "fechou-se em copas" — há cartas nesse naipe, o das emoções, que trazem figuras extremamente reservadas e trancadas em si mesmas. O dois de paus, reflexivo, está numa posição de imobilidade absoluta, analisando o poder de realizar coisas no mundo e o caminho a ser trilhado. Justamente no naipe de paus, representante do elemento fogo, de ação, criatividade e energia construtiva, chama a atenção uma figura assim. "Não fique aí parado/a como um dois de paus", diziam as mães, na minha geração. Vá estudar!

O leitor deve estar querendo saber o desfecho dessa historinha. Pois bem: em razão da impossibilidade de digitar durante dois meses e meio e movida — agora sim — por uma paixão antiga pelos chamados "estudos do oculto", estou fazendo um curso de tarô online e outro de baralho cigano, com professores excelentes. Não pretendo deixar a literatura, é claro, mas quem sabe futuramente, quando a pandemia passar (sim, deve passar algum dia) teremos mais uma taróloga profissional na praça? O velho detetive Sombra, dos programas de rádio de antigas décadas, deve saber a resposta.

Brincadeiras à parte, vale a pena conhecer o riquíssimo simbolismo dos arcanos, pois os arquétipos têm estreita relação com o inconsciente coletivo. Não é à toa que o mestre Jung estudou o tarô com tanto interesse e dedicação. Trata-se de um saber profundamente enriquecedor, que só pode contribuir positivamente para quem faz da escrita de ficção um modo de olhar o mundo e de viver.

 

 

 

 

 

março, 2021