©maja cvetojević
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Logo depois do enterro, meu irmão e eu entramos no quarto dele. Tudo estava arrumado nos seus lugares, as gavetas da cômoda muito bem fechadas, e no guarda-roupa que ele mesmo fizera havia pilhas de camisas ainda embrulhadas no papel celofane. Reconheci — ou pensei reconhecer — a camisa lilás que eu lhe dera uns dois ou três anos antes. Tinha roupa demais ou guardava sistematicamente as roupas novas? Procurei algo que nem mesmo sabia o que era, um objeto diferente, talvez, uma lembrança concreta do pai tão fugidio, do pai ficção, como dizia uma de minhas irmãs. Mas no quarto modesto e minimalista não havia nada, nem sequer um bibelô. Meu irmão me lançava olhares tristes, sem entender direito o que eu buscava. E então me lembrei do cheiro dele nos últimos anos, do cheiro suave que eu não sabia identificar. Continuei a revirar as gavetas do guarda-roupa e vi os sabonetes arrumadinhos, num canto. Pedi ao meu irmão um sabonete daqueles, queria um legado. Ele o pegou delicadamente, colocando-o sobre a cama. Aqui está, pode ficar com ele.

Desci a escada sozinha, apertando com força o pequeno retângulo cheirando a flor. Era isso, então. O cheiro do meu pai podia ainda ser apreendido, segurado, guardado, preso, retido. O sabonete era a origem do perfume. Tão insignificante e barato, o único objeto concreto retirado daquele quarto que dificilmente eu voltaria a ver. Minha herança cabia na palma da minha mão.

Meses depois de outro enterro, ao qual não compareci, em outro país, voltava de um passeio e, por sugestão do meu companheiro de viagem, decidi ir à vila onde meu amigo está enterrado. Concordei sem grande certeza, mais por inércia do que por uma vontade genuína. O calor incomum para a época e o horário — três da tarde — impediam-me até de pensar. A luz do dia era tão forte que a ideia de sombra me obcecava. Meu acompanhante entrava e saía das ruas estreitas, tentava manobrar em vielas antigas e eu não reconhecia nada, como se nunca tivesse visitado a vila onde certa vez passara um fim de semana. Assim não dá, disse ele. Não adianta ficar fazendo volteios por aqui. Então, vimos a igreja e paramos. Como o restante da vila, ela parecia deserta. Vendo a porta central fechada, preparamo-nos para voltar. Resolvi espiar a porta lateral. Estava entreaberta. Abri-a, sem enxergar nada.

Duas mulheres conversavam alto, enquanto arrumavam o templo. Uma delas, com a vassoura na mão, suava tanto que sua blusa estava encharcada. Perguntei-lhe sobre a localização da casa do meu amigo, que sabia ser numa esquina. Não me lembrava mais do nome da rua. Ela começou a falar sobre ele, enquanto a outra se afastou. Chorou ao dizer o quanto o apreciava, contou da amizade dos dois. Ele era muito querido nessa região, disse, enxugando as lágrimas. Amigo de todos. Se estivesse vivo, amanhã certamente iria à inauguração do espaço que construímos para a comunidade debater seus problemas. Nós sempre falávamos sobre isso. Querem ir ao cemitério visitar o túmulo? Não é longe, eu posso indicar o caminho. Decidimos não encompridar o assunto, por causa do calor. A mulher desejava continuar falando, mas nos despedimos. Saímos às cegas do lusco-fusco da igreja para o sol fustigante. Ele não era mesmo um homem comum, possuía um atributo raro, capaz de fazer todos chorarem, inclusive a zeladora da igreja. Fiquei indecisa quanto à ida ao cemitério. Depois de errarmos o caminho da casa duas ou três vezes, consegui reconhecer a esquina. Paramos em frente à casa com dois vasos de barro na porta. Meu acompanhante não os viu e amassou um pouco a lateral do carro. Fiquei olhando as janelas abertas e me surpreendi: quem poderia estar ali? Havia pessoas almoçando, ouvi barulho de talheres. No quarto ao lado da cozinha havia um grande livro cor-de-rosa sobre a cama — ou seria um notebook? Devia haver um engano, achei que nos equivocamos. O objeto rosa, com figuras na capa, parecia pertencer a uma criança. Bati à porta. Imediatamente, uma moça a abriu, sorrindo. A filha dele, que eu só tinha visto duas vezes. Ela e o marido estavam acabando de almoçar. Convidou-nos a entrar, pôs água no fogo para fazer café.

Na pequena sala, tudo permaneceu igual, todos os objetos no mesmo lugar. Fiquei olhando as esculturas de barro, as bandas de pífano, as figuras vindas da África, o retrato de Che Guevara. Jamais pensei que voltasse ali. Tinha imaginado, inclusive, que a família talvez fosse dispor da casa. A moça e o marido conversaram com meu amigo, enquanto fui ao quintal mínimo procurar a macieira anã que dava maçãs pequenas como biroscas e muito doces. A macieira desaparecera e ninguém soube explicar como. Que estranho, pensei. Restou o limoeiro, carregado de limões grandes, ainda verdes. Perguntei à moça se podia levar um. Logo depois nos despedimos, o casal precisava se arrumar para um show numa cidade próxima. No caminho de volta, apertei o limãozinho na mão esquerda e tentei aspirar o seu perfume. Não foi tarefa fácil, pois quase não tinha cheiro. Deixei-o dias e dias na gamela da cozinha. Não quis parti-lo nem o usar, só olhá-lo de vez em quando. O limão quase sem perfume e o sabonete cheirando fortemente a flores do campo. Heranças aparentemente irrisórias, simbólicas, de dois homens muito diferentes, que pouco ou nada tinham em comum e que apesar disso permanecem tão vivos na minha memória.

 

 

 

 

 

junho, 2021