©souvick ghosh
 

 

 

 
 

 

 

 

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escrevo por não saber criar abelhas

escrevo por não querer criá-las

colher o mel própolis veneno

escrevo por não saber criar abelhas

fincar a pele atravessar o tempo e o ruído

enroscar nos cabelos

veja, os machos entram em qualquer colmeia

as fêmeas morrem onde nascem

escrevo por não saber criar abelhas

por não querer criá-las

por querer ter nas mãos um cigarro enquanto te escuto.







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a criança sabe que o mundo é quebra-cabeça rastejante

que a lesma é uma cartógrafa que retrai o corpo junto ao sal

e que os besouros guardados em uma caixa de cerveja

arranham o papelão como se fizessem música.


muito é dito quando se é criança

e você anda nas ruas desse país estrangeiro chamado casa

e escuta a língua estrangeira na boca dos pais

com um pouco de esforço você poderia entender o canto

mas você não entende

como em algumas noites de julho na lista de compras

cenoura frango tambores de óleo diesel pão

a madrugada acesa dentro de casa

um boa noite permissivo para que a criança que sou

possa não dormir e saber que a geada vem

e que no outro dia não vai à aula

porque do lado de dentro

a mãe cozinha um banquete às duas da manha

e do lado de fora

o pai se junta aos amigos para dançar na lavoura

o trator o incenso fóssil

a noite, a geada parecia festa

uma grande festa de frio e fumaça para ninguém morrer de fome.


hoje pouco é dito

o adulto sabe que a Terra interage com outros objetos no espaço

que as coisas seguem complicadas ao sul da linha do equador

e que a memória é uma mulher que tece durante o dia e a noite

e não desfaz a mortalha.



[Poemas inéditos]




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sheela-na-gig abre as pernas

me olha menos com espanto

do que com vontade de transformar

a face em vincos de pedra.


sheela-na-gig abre as pernas

me convida a atravessar

essa pequena caverna

a talhar a rocha

o cinzel forjado nos quilombos da tijuca.


sheela-na-gig

sustenta meus olhos altos

sustenta isso de parir

de criar o mundo no fundo da caverna

e nos criar no fundo da caverna

como se nunca estivéssemos prontos para nascer

morrer sugar essa seiva cósmica

que derrama.


suspeito sheela-na-gig

de dentro da caverna

para ser justa, também tenho medo de nascer

morrer de sujeitar meu corpo à imprecisão

do bisturi.


mas médicos arquitetos santos

me encontram no fundo da caverna

tateiam sheela-na-gig como se revolvessem a terra

decidem que é tempo de nascer que é tempo de morrer decidem

que a minha pele seja outra pele que seja uma pele

descosturam as vértebras

e percebem com mais espanto do que vontade de espantar

os lábios carnudos

seus olhos abertos

sheela-na-gig incrustada em mim.







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como um cão recém-nascido meus pés

farejam as ruas.


dos postes não jorra leite

o fio invisível não conduz o instinto

ao lugar seguro.


talvez eu seja o animal escolhido para o abate

a traseira materna a sufocar meu rosto ainda mole

ainda quente

os pelos tão pretos e brilhantes

como que para provar aos pedestres

os limites do corpo vencido.







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tenho medo de caminhar pela avenida quando chove

são muitos os vãos

os comércios fechados

as igrejas

os terrenos sem carpir quando chove


não há o burburinho dos corpos no meio-fio

ou as crianças de bicicleta

ou os senhores ou as senhoras

me fazendo lembrar das novelas na época das rádios

hoje quase ninguém escuta 

a rádio eu sinto medo


porque dentro da casa

o som está no volume máximo

as janelas fechadas para impedir

a formação de pequenos rios

tudo se entende do lado de fora

mas há um isolamento acústico social

que não deixa as famílias escutarem meu medo


quando chove e o poste falha

provavelmente não há mulheres

na equipe que inspeciona os postes

no projeto arquitetônico dos banheiros

no setor de obras da prefeitura

que deixa que nos vãos se instalem mais

e que nos lotes cresçam florestas

e entre o baldio e as folhagens

cresça o assombro quando meu medo


escuta os passos

ainda por cima ele assobia

não sei se como método tranquilizante

não sei se como prenúncio

não sei se é a rua


é a noite é a chuva

é o vão é o lote é a mata é o mato

é a vala é a imagem do corpo atravessado

ou a face oculta daquele que atravessa.



[Poemas do livro Cartografias do corpo que canta. Patuá, 2021]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Bárbara Mançanares nasceu em Alfenas e cresceu nas ruralidades de Paraguaçu, Minas Gerais. É poeta, bordadeira e integrante da Academia Paraguaçuense de Letras. Possui graduação em História (UFOP) e mestrado em Museologia e Patrimônio (UNIRIO). Inscreve com as linhas e as letras o que suspeita no mundo. É autora do livro Maio (Quintal Edições, 2018) e Cartografias do corpo que canta (Patuá, 2021), financiado com os recursos da Lei Aldir Blanc. Possui poemas publicados em antologias e coletâneas: Antologia Ruínas (Patuá, 2020) e Tomar Corpo (Jandaíra, 2021).