©enriquelopezgarre
 

 

 

 
 

 

 

 

A toalha de plástico



Há pouco mais de dois meses o pai havia ficado desempregado e o dinheiro da família estava a findar. No fim de uma das manhãs de desemprego, ao chegar em casa depois de tanto andar de bicicleta à procura de outro/novo trabalho, o pai que sempre fora honesto, que sempre fora cumpridor de seu papel paterno, entra em casa cabisbaixo e em um silêncio sepulcral. A manhã estava quente, o céu era de um azul tão azul e sem nuvens, mas impossível de ser visto como uma potente beleza por aqueles olhos que se debruçavam sobre o chão. A tristeza era tanta e repousava, sem piedade, sobre os ombros cansados do homem de quase cinquenta anos e dois filhos para alimentar. Mas, por outro lado, a fé inabalável da esposa era proporcional à sua tristeza.

Lavou as mãos, passou água no rosto suado e sentou-se à mesa junto aos pequenos e a negra mulher que, na juventude, se apossou de seu coração de rapaz também negro e, também, pobre. O casal de gatos sem raça de prestígio, caminhava por entre os pés humanos por baixo da mesa numa miadeira que dava dó. A fome também assola os animais domésticos em tempos de crise, como essa que enfrentavam. Era a primeira vez que nas panelas daquela casa, não havia a "mistura" para compor os pratos junto com o arroz e o feijão. Nenhum pedaço de carne, por mais magra e sem qualidade que fosse, nunca havia faltado. Era um pai amoroso e, colocar na boca dos filhos apenas o arroz e o feijão, era dos constrangimentos, o maior. A esposa, cheia de fé, reconhecendo a dor daquele a quem um dia decidiu por amor, dividir a vida, disse — meu bem, vamos pensar que poderia ser pior, pense que muitos, uma hora dessa, não têm nem esse feijão e nem esse arroz para botar na boca.

A filha, com pouco mais da metade de uma década de vida, era tão apegada ao pai que, vez ou outra, botava uma porção grande de ciúmes no coração do irmão mais velho que ela apenas dois anos. O coração da menina sofria mais pela ausência da alegria do pai, do que pela ausência da carne naquela mesa. Seu pai sofria e ela já entendia!

Sob os pratos rasos, uma toalha plástica ilustrada com alimentos, repousava sobre a mesa e era tão injusto que nenhum deles fosse real. Linguiça, frango, carne, verduras, frutas e jarras de suco ali impressos de uma ponta a outra da mesa. Tudo tão farto! Mas, aos olhos da menina, uma mágica se fazia. Como um anjo que salva pessoas das piores dores, ela pegou um garfo, olhou para o pai e, quase espetando a linguiça ilustrada na toalha, disse — você quer essa linguiça pai? E, à medida que pressionava o garfo contra a toalha de plástico, sorria com todos os dentes ainda de leite. O pai não sabia se chorava, ou se ria, mas tentou rapidamente não deixar que a emoção interrompesse aquele momento tão mágico e lhe respondeu: — filha, me dê só a metade dessa linguiça que papai tá fazendo dieta. E lá foi a menina brincar de servir o pai, a mãe e o irmão, naquela mesa farta, imaginária e feliz. Quando já não havia nem arroz e nem feijão nos pratos, todos diziam por uma boca só que nunca tinham comido tanto na vida. O pai, já inundado de uma paz interior, propôs um brinde com o suco de caju gelado e estampado na toalha. A menina, rápida que só ela, estendeu seu copo vazio e o pai a serviu, enquanto a mãe servia o filho. Aos risos e com um bocado de fé, a família atravessou o dia e todos os outros dias difíceis que estavam por vir.

Anos se passaram e a toalha, como um objeto mágico e por que não dizer sagrado, passou a ser posta somente nos períodos mais difíceis. Os dentes da menina já não eram os mesmos, e a força que lhe movia, menos ainda. Mais difícil do que ter somente arroz e feijão para comer, era adolescer num universo de empobrecimento. Isso sim era das coisas da vida, talvez a mais insuportável. Entre um dia difícil e outro pior, a menina que já não era mais tão menina, deixou de cortar as linguiças imaginárias e passou a testar a da fé da mãe, cortando a própria carne dos magros punhos.






A vendedora de livros



A menina negra, interiorana e pobre, casou assim que adquiriu os primeiros sinais de que tinha ficado "moça". Era assim que, até meados do século XX, e aqui acolá ainda hoje no Ceará, se referiam às meninas que sangravam pela primeira vez.

Os filhos, uns cinco, foram todos sendo logo providenciados um atrás do outro e concebidos pelo maldito buraco de um lençol. Afinal, mulher decente não ficava nua nem na frente do marido. Assim, um a um, os filhos foram feitos nas brechas da noite e do lençol branco que servira de prova da virgindade na noite de núpcias. O sangue ali, exposto sobre a cama, e o homem, pai de todos os seus futuros cinco filhos, com sorriso no canto da boca vendo seu troféu em tom vermelho encarnado. 

Ela era dor na primeira vez e em todas as outras. Nunca soube o que era ter prazer. Orgasmo? A palavra mesmo, nunca pronunciou. O corpo, sempre coberto e, nunca jamais, trocou de roupa na frente dele e de mais ninguém. O marido, achando pouco as vestes que escondia aquele corpo franzino, fez com que ela também se vestisse de dor depois que a abandonou com todos os cinco filhos ainda crianças. O "homem da casa" foi-se para nunca mais.

Zulmira ganhou o mundo circunscrito nas ruas de sua cidade do interior, para vender livros. Ela e os filhos tinham que sobreviver e, antes que ela morresse de ódio e de tristeza e de revolta, os filhos precisavam comer e crescer e estudar e, quem sabe, o quanto antes, criar suas próprias famílias. A cidade pequena foi ficando cada vez menor. Trouxa debaixo do braço, os filhos todos sob sua saia, saiu rumo à capital. Para a cidade onde nascera e se criara e tivera seus cinco filhos e um marido que nunca lhe viu nua e ainda lhe abandonara, jamais voltaria a não ser para rever os parentes. Humilhação demais ser deixada pelo marido. Passou os anos seguintes a se vestir também de culpa. Afinal, nunca foi despudorada e, segundo sua mãe, ela precisava se comportar como mulher casada, com bons modos principalmente nas horas íntimas com o marido e, não ficar despida, era regra primeira. A mãe lhe dizia que, embora os homens gostassem de se deitar com mulher puta, dessas assim bem puta mesmo, que dizem onde e como querem, eles não a valorizam. Era o que ela pensava dia e noite, noite e dia. Nunca que devia ter escutado os conselhos de sua mãe já tão velha e, também, sem experiência com a vida e com os homens.

Tinha vinte e cinco anos quando chegou carregada de meninos em Fortaleza e continuou a vender livros e a vida seguindo sem prazer, sem lazer, sem amor. Tudo era trabalho, sacrifícios e os filhos que precisavam comer, crescer, estudar e, quem sabe, o quanto antes, criar suas próprias famílias. Economizava até o que não tinha, adquiriu uma pequena casa em um conjunto habitacional. Abrigou cada um dos filhos que foram, com o passar dos anos, apresentando algum tipo de distúrbio psíquico. Fobias, ansiedade extremada, megalomania, fuga da realidade e, como se diz no bom linguajar cearense: mania de grandeza.

A pobreza extremada é um perigo para a saúde mental das pessoas — era o que dizia sempre uma amiga da família que, sensível às situações dos filhos de Zulmira, tentava amenizar as culpas.

Os anos se passaram e Zulmira, já velha e medrosa de que nem o básico entrasse em sua casa, continuava a labuta sol a sol, a vender livros. Sim, à revelia das livrarias existentes na cidade grande, ainda assim, havia pessoas que compravam livros na porta de casa. Zulmira andava para vender e andava para cobrar os clientes inadimplentes. Sua vida foi atravessada por muitos caminhos. Enquanto andava acompanhada do cigarro, o único vício que adquiriu e que, de alguma forma, lhe sinalizava um comportamento de rebeldia para uma mulher de sua época, tentava organizar a cabeça que não era lá muito diferente da dos filhos. Zulmira tinha medos profundos! Medo de morrer antes dos filhos se fazerem adultos, medo de que as filhas mulheres sofressem algum tipo de abuso físico, de que os filhos homens se envolvessem em algum tipo de violência ou ilegalidade. Medo de faltar o alimento dentro de casa que, embora pouco, nunca faltou. Medo de ser só durante toda a vida que lhe restava, mas lá no fundo, bem no fundo de sua alma, guardava as palavras sempre duras de sua mãe — Uma mulher separada, tem que se o respeito! E se dar ao respeito era permanecer sozinha, nunca mais amar ou ser amada, se é que um dia, foi. Nunca falava sobre seus medos com ninguém. Não é nada saudável para a saúde emocional de uma mulher ser largada pelo marido com cinco filhos para criar. Nem na cidade grande, nem na média e nem na cidade pequena, isso não é coisa de homem decente!

De tanto andar e de tanto fumar, caiu doente aos oitenta e nove anos de idade. Dos filhos, dois seguiam bem ou malcasados, uma separada, uma viúva e uma sempre solteira que já havia surtado algumas vezes. Muitos netos e bisnetos que, vez ou outra, ela confundia os nomes.

Zulmira ali, num leito de hospital, e não tinha balão de oxigênio no mundo que desse conta do pulmão já tão estragado e carcomido de dor e de nicotina. Dizem que o pulmão é o órgão da emoção e, por isso, ninguém soube ao certo o que fez Zulmira atravessar a estrada depois de dias chamando por sua mãe num quarto de hospital. Ninguém sabe dizer se foi o acúmulo de emoções difíceis ao longo da vida ou se o acúmulo do fumo no seu corpo.

— Mamãe, me leve que não aguento mais sofrer mamãe. Vem me buscar mamãe — dizia Zulmira, no leito da morte.

E, numa tarde de novembro, a mãe de Zulmira veio. Ninguém viu, mas ela veio. Passou as mãos sobre os olhos da filha, pegou-lhe pelas mãos e, juntas, atravessaram o portal.

A filha que nunca se casou e que já tivera vários episódios de surtos, nunca deixou de morar com Zulmira. E foi ela que, ao saber que a mãe acabara de falecer, foi cuidar de limpar e organizar tudo para a última ida da genitora à casa que construiu sozinha, às custas de muito passo dado debaixo desse sol que nunca tem fim.

Antes, porém, cuidou de tomar o antidepressivo. Enquanto limpava, chorava tudo o que morava dentro e fora de todos os surtos que já tivera na vida. Os dias passavam lentos e insuportáveis e, assim como sua mãe quando no leito do hospital, passou a dizer dia e noite, noite e dia — Mamãe, me leve que não aguento mais sofrer, mamãe. Vem me buscar, mamãe.






Quintal negreiro



Enquanto ele entra casa adentro, a mãe, no fundo do quintal, o observa. Numa das mãos vai levando o que para ela é veneno, mas que para ele é alívio. Alívio de Deus sabe o quê! O vermelho da lata, as letras em branco aparecem e desaparecem no movimento apressado das mãos. Na "fissura", ele se senta numa pedra encostada ao muro do quintal. A mãe sabe que não adianta mais pedir, mandar, implorar. Dá as costas e recua. Não quer mais ver a fumaça sendo inalada por aquele que, para ela, é só um menino. Não gosta de ouvir a tosse que, repetidas vezes, sai dos pulmões do filho como se fosse gritos. Nervosa, ela acende um cigarro. Sentada com a mão na cabeça, olhando a terra batida, invoca ao Senhor. Ali, em silêncio, se compadece dele e, dela mesma.

Cada vez que escuta um tiro, na favela, corre do jeito que está em casa, às vezes quase nua e, aos prantos, sai em busca do filho que, supostamente, está morto. Não conta as vezes que sentia alívio quando via que o filho não era o seu. Mas era sempre filho de alguém que conhecia, de algum outro morador da rua que morava ou das redondezas. Enquanto ouvia a tosse quase inacabável do filho, fazia sempre a mesma oração — Senhor, eu te peço, faça com que ele sinta alguma coisa agora, leva ele agora, meu Deus, faz ele se sentir mal. Não permita, meu Deus, que meu filho morra por aí no meio da rua, bêbado, esfaqueado. Eu te peço, meu pai, leva meu filho aqui e agora, nesse quintal, aqui na minha frente, dentro de casa, perto da família.

O filho não morre e ainda se levanta e sai na "noia". Para ela é mais uma noite com tons cor do medo. Qualquer grito ou barulho de tiros lhe transforma, junto com a família, em seres em desespero.

Dentro da Bíblia da avó, os bilhetes para Deus se acumulam. São pedidos e mais pedidos de proteção para o neto, para a filha e toda a família que vive sob ameaça. A cada ameaça a mãe sai em defesa do filho, paga o que deve e o que não deve. Nos bilhetes endereçados ao divino, os nomes dos inimigos escritos em letras legíveis e gigantescas para que Deus não tenha dificuldade de enxergar e não demore a ver. É preciso ter fé, é preciso ser forte! Um dia, quando menos se espera, disse a mãe — uma legião de demônios correu a favela — entraram e saíram de becos "caçando" seu filho como bicho a ser abatido. Não adiantou pedir para que os anjos acampassem ao redor do filho e o protegesse. No dia de sua morte, trancado dentro de casa, abriu brechas no telhado, pulou o muro da vizinhança e correu. No caminho, na fuga, encontrou uma das tias. É que notícia ruim chega ligeiro nas favelas e a tia correu à sua procura. Afinal, tem sempre alguém de olho e de ouvido bem aberto. A tia gritava — Venha por aqui! — Ele, em desespero e transtornado de medo, pedia, clamava – Tia, chama a mãe — A mãe, pobre mãe, não podia receber pior notícia. Tanto que pediu a Deus para não ser daquele jeito, daquela forma. Onde já se viu uma mãe ver um filho abatido, como um bicho, no meio da rua? Pediu para não ver derramado o sangue daquele que pariu, que amamentou, que protegeu o quanto pôde. A mãe, a irmã, as tias, os primos, a avó, os vizinhos, a rua, o bairro, amigos e inimigos viram aquele corpo jovem, vinte anos apenas, jogado no chão, se esvaindo em sangue. A namorada ali, sentada ao lado do corpo, beijando e gritando seu nome. Pânico, desespero, choro, muito choro. Desolação. A perícia chega. Corpo na lata e o rumo que não é mais a casa. A dor que não passa. Vizinho que liga o som. A vida que, rapidamente, segue. A morte que, mais uma vez e, precocemente, não se acanha e faz seu serviço dando tiros certeiros em um filho de um quintal negreiro.






Não era amoooor ôh ôh, não era amor era "trepada, trepada, trepada"!



Um ano e um mês! Um ano e um mês foi o tempo que fiquei insistindo igual uma louca em um cara que nunca me chupou. Indecente! Quantas vezes (ex)pus minha boca para engolir tudo o que ele me dava. E ele ali: nem amigo, nem amante, nem irmão. Um ciuminho vez ou outra e os sinais do abuso e da loucura dele, mas também da minha. Escrevi todos os poemas possíveis e imagináveis.

Meus melhores sentimentos via zap, face, insta e também na sua caixa de correios. Até um motorista de aplicativo foi lhe entregar minhas palavras quentes e apaixonadas. É cada coisa que a gente se presta a fazer nessa vida quando a paixão nos devora os nervos, os neurônios, o sono, a paz, a sensatez...

Eu cheguei ao ponto de dizer que, com ele, eu fiz o melhor sexo da minha vida! Mas como se ele nunca soube do cheiro e nem do gosto da parte mais íntima do meu corpo? Vamos combinar, né? Sexo oral é fundamental e ele nunca desceu tão (lá em) baixo. E até hoje, eu que já fui tantas vezes lambida em frente e verso, nunca entendi por que aquele homem que, até então me parecia tão bom de cama, nunca foi capaz.

Quando me disse que muitas de suas experiências sexuais findavam no gozo e no pedido mais que ligeiro de um Uber para levá-lo do motel até sua casa, e quando quis me "ensinar" a diferença entre igualdade e equidade ali, nu, na porta do banheiro de um motel de quinta categoria, sendo ele da minha mesma área de conhecimento, eu devia ter dado um ponto final naqueles poucos, mas intensos encontros de teor puramente sexual.

O tempo passou e, quando olho para trás e me vejo arrebatada por alguém que, com tão pouco, conseguiu muito, sinto até vergonha de mim mesma. Mas são ossos do ofício da carência. Quem nunca? Já não me culpo. Agora já consigo rir de mim e dele também. 

Dentro dos seus olhos eu me disse em verso e prosa, mas ele se foi e, no caminho, saiu me bloqueando de tudo e reatando um amor antigo. No frigir dos ovos, não era bom de cama. Eu é que andava, pela vida, afogada num poço profundo de carência.

Aqui dentro, costuro, todo dia, um ponto na ferida. Como eu pude me apaixonar por alguém que gosta de música sertaneja? Essa é a pergunta que mais me faço? Mas me consolo na poesia de Vinicius: "o coração tem razões que a própria razão desconhece". Nunca mais na vida quero entrar em outra canoa furada. Afogar-me em lágrimas, foi como ser devorada por um mar revolto. E para homenagear esse homem que me fez ver que eu mereço muito mais, nada como um bom trecho de música bem brega do tipo que diz: " A dor do amor é com outro amor que a gente cura". Ainda bem que nisso, sempre fui ligeira...

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Argentina Castro escreve poemas, contos e crônicas e faz arte colagem. É idealizadora da Biblioteca Comunitária Papoco de Ideias, na periferia de Fortaleza/CE, onde garante o direito cultural de crianças e adolescentes. Participa de algumas antologias/revistas/e-books como escritora, organizadora, curadora: O Olho de Lilith, A Banalidade do mal, Paginário, Manifesto Balbúrdia Poética 80 Tiros, Ser uma boa ancestral: mulheres que escrevem, Relicário, O amor nos tempos de lonjura, Sibilas, Laudelinas, Maracajá, Farpas, Berro, Carinhanha: entre rios de histórias. Foi selecionada pelo Itaú Cultural no Festival Arte como Respiro (2020). É filha de uma mulher indígena e de um homem vaqueiro. E, com eles, ouviu as primeiras e melhores histórias de sua vida. Ler, foi depois. Arrisca-se a dizer que gosta de cães mais do que de gente. Aliás, acha-os mais gente do que muitos humanos. É canceriana com vênus em Câncer mas, seu ascendente é em Áries, graças a Deusa! Para Argentina, escrever é como abrir janelas.


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