Quem assistiu ao filme A escolha de Sofia, com Meryl Streep, sabe o arrepio que causa o momento no qual Sofia, presa com os filhos em um campo de concentração nazista, precisa escolher um dos filhos para morrer. Esse é o tipo de escolha que nenhum pai ou mãe sonha em fazer. Acabo de ler a novela clássica de Robert Louis Stevenson, O médico e o monstro, que coloca o leitor frente a frente com um homem que precisa escolher uma das duas personalidades que lutam dentro de si: o rico e adorado doutor Henry Jekyll ou o sanguinário Edward Hyde. Uma escolha não menos arrepiante do que a de Sofia, já que os dois são o mesmo homem.

Ao desenvolver uma droga que permite que venha à tona uma personalidade inconsciente que habita o seu ser, o médico Henry Jekyll permite que ele entre em contato com seu "segundo eu", o cruel e feroz Edward Hyde. Hyde e Jekyll, embora opostos na superfície, são expressões de um mesmo ser, complexo, ambivalente e conflituoso, como todos nós.

O espelho nos mostra apenas uma face de nossa essência. Há outros eus escondidos em nossa personalidade e, frequentemente, evitamos que eus inconscientes frequentem a superfície de nosso caráter e se expressem de forma consciente. O nome Hyde tem a mesma sonoridade que o verbo "hide" ("esconder"), em inglês. Portanto, O médico e o monstro é um livro sobre o eu que escondemos dentro de nós.

Robert Louis Stevenson inspirou-se em um caso real de um sociopata, que viveu e aterrorizou a Inglaterra décadas antes de ele nascer. Edward Hyde é um psicopata que desequilibra a cartesiana Inglaterra vitoriana de Stevenson. "O Médico e o Monstro" é uma novela gótica, de terror, estranha, absurda.  Hyde é a máscara sobre a qual habita Jekyll.

O médico e o monstro é uma tragédia inglesa, brasileira, grega. E as tragédias gregas eram compostas dos seguintes elementos: máscaras, mitos e mortes. E é justamente aí que reside a incrível atualidade de O médico e o monstro no Brasil governado pelo coronavírus: em nome da vida, andamos com máscaras. Colado ao nosso corpo, há sempre um Edward Hyde nos ameaçando a vida. E, assim como os mitos nas tragédias gregas decidiam o destino dos personagens, nosso destino hoje está nas mãos de um "mito" em Brasília. Cabe a nós libertar a nossa essência e, em 2022, desmentir o mito que nos rege e recolocar o Brasil nas mãos de outro conceito grego: a democracia. Se "Sofia", em grego, significa "sabedoria", que saibamos fazer a nossa escolha com Sofia.


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O livro: Robert Louis Stevenson. O médico e o monstro.
São Paulo: L&PM Editores, 2002, 112 págs., RS$ 19,90

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junho, 2021