©bessi
 

 

 

 
 

 

 

 

Prunum silvestre



Sono tranquilo

sonho sonhando

lugares

gentes

verdes pontos

pisando pedras

onde medram flores


nas frestas


Sol a pino

sem réstias

ou "sombras federadas

a um só nó

à noite atadas"


Sal no sangue

na linfa

correndo léguas


No sonho sonhado

amores

nacarando

sem pressa

em lábios d'arcanjo!







Ramus



Recife em dezembro a pegar fogo

verão dos flamboyants e das acácias!

sangue a correr em suas mil hemácias

a não dobrar o tempo, eterno jorro...


Penso em março e nos seus fúcsias,

jambeiros a exalar afeto em asas

e deles colorir um chão begento

à sombra a chegar em passarada...


E setembro manso se aproxima

com seus mantos anis, almiscarados.

Agrestes flores ─ botões em viva cor


depois de estranho verde, invernal ─

repousam n'alma alegre os seus gumes

de uma divisão bem justa, irreal.







Tempestivi fructus



Passeio pelas ruas do Recife...

É inverno.


Um belo e luminoso inverno!

Inverno, promessa-fim que se aproxima...


Oh! estações tão indeterminadas;

como são as sensações dentro de mim

─ aberta estou para as floradas...







Lucernātus



Sou teu novo livro...

Escreve tu o que quiseres...

Teus dedos, calcanhar e rótula

conhecem a rota

dos meus rios;

cada extensão

é clara página:

braços, pernas,

nuca em fios...


Eis ali, exatamente ali,

tal negra flor do deserto


abrindo seus carpelos,

uma sinfonia de fonemas,

gulosos, ávidos, belos...


E sobre rútilo manto,

tramelo o mais de mim

que é só mistério...







Fervǐdus



Em nossa pele escorreu seda,

lençóis finos como véus,

nesta manhã, em bege leito,

— um desespero, um tropel ─

de pés e lábios, puro arpejo,

sonantes sonhos, passaredo,

— nos mil chilreios, bordel ─

de nós em nós tão devaneios,

a dar, ao ninho, novo enredo!


Amor — mortífero ginger alucinógeno,

deste corpo uno em tom erógeno...







Semper amare



O que virá de teu acutilante olhar

para além de enigmáticos laivos lunares?

Serão sístoles ou diástoles?


Espera amiosante

─ o amor é um calafrio entranhamente solar.







Flumen*



Faz tempo um Josué assim falara

das carnes brancas de seus habitantes...

És mangue que em dobras bem retornas

ao puro rio, tão nu de anos distantes


de uma era entregue às meninas

Carol, Kissa, Virgínia, rendilhado...

És rio que em mil dobras bem alojas

o verde mangue cheio de pecado


E hoje rio-mangue nacarado

em azul e bege, um tempo sem

passado — o presente apenas se


chegando para dizer do amor

um fio sem laço, um caranguejo

alimentando amantes com seu fel.



*Uma referência aos mangues descritos por Josué de Castro. Eles foram vistos por mim em dois momentos: nos anos 1980 e agora no 2020.







Versicolor



Amor — intensa louca entrega

um corpo quilha cortando

o cinza em que se encerra

para alcançar sem pressa

o teu azul!







Condimentum



E do tempero seco deste rio,

a correr minhas veias sem um corte,

é sal tocando águas, seus desvios,

na direção da foz ─ a quase morte


— quiçá um Aqueronte, um desvario,

um leito leite bege que me move

em margens tão insanas, imperfeitas

(botão de flor em permanente cio)


suspiros densos, quentes, aparecem

torpor quase letal, assaz dolente,

amor ─ estranho espaço, régia cruz,


a colorir de azul as brancas veias

desse corpo — um rio que serpenteia

e grita como um cão andaluz.







Lux



Do fúcsia e do prata

a emprestarem à madrugada

as suas asas...

entre poema, retrato e

tarde quente em Amorabã,

bendizer aqueles namorados-torvelinho...


E sob a réstia de um astro iluminado


que vaza a sua luz por toda a casa

trazer à vida um jardim cheio de graça

bordado nos lençóis em desalinho.


— Amor a refrescar essa manhã!







æquilibris



Desde o primeiro olhar

onde tudo se fez caixa

olho, boca, nariz,

ombros, cintura, coxas

pele, ossos e rios

muitos cursos, leito em cio,

e da felic(idade) em árvore

a m(arcar) horizontalidades.


Da frase "— tire tudo!"

— a primeira —

nas horas exatas, certeiras,

relógio de sol, olhar de lua,

dentes em tons sibilantes,

oclusivas, laterais, vibrantes

em beijos nada roucos,

só loucos, muito loucos

a m(arcar) horizontalidades.


De um joelho

quase a melhor p(arte)

promessa conti(nua)

de sucções ferinas

frontes sem hierarquias,

apenas um anjo e uma santa

cerzidos em veleidades

a m(arcar) horizontalidades.


Recordam, amantes, o começo

entre cafés, por vezes taninos,

e os pequenos desastres


— Frangelico, dedilhadas partes,

sob conversa, sombras, silêncios,

vulcânico atol, afinidades,

andar realizado, regozijo,

pedindo pedras no caminho

a m(arcar) horizontalidades.


17 portas e 13 janelas


a (gosto) entre tijolo e tijolo,

construção sem fim;

nela dedicados poemas

caliças, fateixas, sereias,

velas, mares e rios,

mangues, açudes e lodo

ou das águas ─ sempre elas ─

a m(arcar) horizontalidades.


Águas salgadas, etílicas, linfáticas

com seus verdosos mostos,

colares, livros, peça em conchas,

um falso Panamá, o revolucionário,

empadas de queijo holandês,

pastéis assaz portugueses,

quem sabe, em prato bem posto,

um sorvete ou consommé,

tão ao gosto do freguês

e o andar compassado, mãos dadas,

a m(arcar) horizontalidades.


Liberdade de tê-lo em concreto


a qualquer hora, em qualquer via,

por segundos, horas ou dias

em seus jardins tão secretos,


circunstâncias (algumas), teto,

a m(arcar) horizontalidades.


Tudo isso e muito mais

confesso inconsútil e traquina

ao abrigo do signo paterno:


Amorabã — esse "estranho universo em águas

submerso".







Sphinx



À janela

olhos hápticos

tocam o mundo


— dupla imagem

de bailarinas formas

em uma viagem

imatérica e brejeira.


Com dedos mágicos

— imaginados ─

abro uma fenda

mergulho inteira

em revoltas águas

de bege profundo

seguindo ao sal

das abissais treleias.


É tarde...

Os olhos continuam à janela

triscando luzes, formas, cores

mas a alma já no horizonte

aberto sem rezas, tramelas...

Apenas lá no começo de outro mundo.


Decifra-me? Jamais!


Estou naquele lugar onde nada chega

nem pensamento, palavras, atos, omissões

ou peras...

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Virgínia Leal, doutora em Semiótica e Linguística pela USP/Université de Paris X (1999). Professora e pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos da Universidade Federal de Pernambuco. Pesquisadora nos campos interdisciplinares que articulam Discurso, Arte e Direitos Humanos. Escritora. Adora ler, conversar, dançar, comer, beber, saracotear, vovozear, filhotar, amar...