[Coroa de Barbara Carnielli, dentro da exposição AR, Galeria Apis, 2019]
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Elaine Pauvolid: utilizo a pintura, o vídeo e a escrita. Interesso-me pelo diálogo entre o processo criativo e a Psicanálise, a Filosofia. Minha mais recente exposição individual foi Fazer, modo infinitivo, no Centro de Artes UFF, em 2018. Publiquei meu terceiro livro em 2011, O silêncio como contorno da mão (Multifoco/Orpheu).

 

Portfólio

> Fazer, modo infinitivo

 

Na Germina

> Poesia

 

 

 

 

O movimento é, sem sombra de dúvida, uma das mais importantes expressões daquilo que se acostumou chamar de tempo. O mover das formas como que a criar dobraduras na água espelha esse paradigma. Tirante a música e as artes do corpo (dança e teatro), foi o cinema que o libertou de seu irmão mais novo, o espaço. Como os corpos para a dança, as palavras para a poesia, o som para a música, se há uma matéria-prima no cinema é o tempo, como o filósofo Gilles Deleuze esclarece em duas obras sobre o tema. Não um tempo qualquer, mas um tempo puro, ontológico, a subordinar o espaço, tal como se encontra na obra de outro filósofo, Henri Bergson, e que, segundo Deleuze, o cinema seria a mais aguda execução dessa ideia. O cinema executaria assim uma libertação do tempo de outras formas continentais de nossa percepção, uma vez que, na arte cinematográfica, o tempo é primaz a essas outras formas. O cinema as insularia num arquipélago cuja coordenação só é possível devido à primazia do tempo. Em suma, o tempo conservaria a narrativa. No entanto, ainda que as garras de Lumière tenham agraciado o tempo com uma liberdade inovadora, elas ainda apontavam, em seu maquinário, a vitória do eleatismo, na medida em que o movimento era agora mera ilusão diante de fotogramas que reforçavam sua falsidade e, assim, o cinema se tornava corolário da noção de eternidade. O fotograma passava a ser o eterno, ao passo que o tempo, a ilusão perceptiva produzida pelo cinematógrafo. É a partir de tal contexto que analiso a recente peça de Elaine Pauvolid, Poemas para projetor. Como o nome afirma, é no encontro de duas artes que a arte de Pauvolid interage. O título mesmo é um achado: ao mesmo tempo em que conserva algo de retrô, daquelas coleções em que se escreve 'poemas para', ele guarda alguma estranheza. Os poemas aqui, mais do que passíveis de projeção, estão a serviço do projetor; quer dizer, só são possíveis se se parte não do olhar proporcionado pelo olho humano, mas do olhar da câmera, a percepção que se inaugura com ela. Os poemas em questão substituiriam os fotogramas como portos seguros da eternidade, enquanto que o projetor seria o próprio tempo em si, em seu esvaecer. Os poemas seriam então instantes de uma projeção, cartazes presos a uma linha de produção, como que a irradiar um destino. Por sinal, o poema que encabeça esse serial combina três acepções: destino, acaso e mudança. Afinal, o acaso muda o destino? Há interferência do acaso sobre o destino, e mesmo deste sobre o primeiro? Eis o problema-chave a meu ver levantado pela coleção.

Uma resposta à pergunta anterior, suscitada pelo primeiro poema, estaria respondida na disposição gráfica do segundo: no segundo poema, a palavra 'acaso' é duplicada e as duplicatas colidem tipograficamente na última letra, 'o', aqui facilmente confundida com o número zero, logo, com a noção de nulidade, nada e vazio.

É a partir desse filão que uma parte significativa dos poemas de Poemas para projetor segue: seja, no terceiro poema, em que se espelha a palavra eu, e assim se tem uma mancha gráfica que nos remete ao som 'ne', que, como se sabe, nas línguas neolatinas, é correlativa à ideia de negação; seja, por gestalt, quando a autora combina pseudo-anagramaticamente a estrutura projetiva "éden/nada". O Éden, que diz respeito ao Paraíso, é, por definição, um espaço acósmico, mito exemplar da eternidade, por estar alheio à perenidade do tempo. Mas essa é uma condição que remete o Éden justamente ao nada, como a poeta adverte. Por sinal, o que não faltam nesse 'projeto para projetor' são recursos gestálticos, destacando-se em especial o preenchimento mental de palavras propositalmente vazadas, como que a preencher o que lhe falta e até o que não lhe falta. Por espaçar irregularmente a palavra 'egolalia', tem-se a impressão de que o vocábulo não está completo. Aliás, a palavra 'egolalia' não existe, é um cacófono de 'ecolalia', que constitui uma repetição de sons comum em pacientes catatônicos. Por sinal, 'egolalia', 'ecolalia', 'cacofonia' e 'catatonia' é um belo arranjo sonoro. Por falar em sonoridade, gostaria de destacar também o fundo sonoro, a meu ver, musical, que ouvimos ao longo da apresentação, o que só completa a experiência que o leitor terá ao assistir a esses poemas.

 

André Luiz Pinto da Rocha na Germina

> Poesia 1

> Poesia 2

 

 

 

 

 

 

Para mim essa consciência de um espaço plástico que você consegue é realmente muito importante. Veja, costumo dizer que se temos um suporte (uma tela, uma folha de papel, etc.) e nelas circunscrevemos algo, ela deixa de ser apenas o suporte e passa a ser um suporte para uma consciência de um espaço plástico. Mas temos algo anterior (ou entre um e outro), quando o suporte deixa de sê-lo, mas ainda não é o (suporte) de uma consciência de um espaço plástico. Seria um pós ou pré-fenômeno? Pré por ser anterior ao suporte de uma consciência de um espaço. Pós por ser posterior ao suporte. Nesse outro espaço onde tudo isso ocorre será que podemos afirmar que é o local do silêncio, da ausência e, simultaneamente, o local de uma possibilidade de ruído e presença? Um paradoxo na medida em que é um vazio cheio? Uma outra lógica, a do terceiro incluído? A possibilidade de um poema? Parece-me que sim.

Mas você vai além com a anulação das margens do suporte. Isso, certamente, pelo poder de concentração das palavras por ser também geradoras de ideias, ou em última análise, de pensamentos (ou possibilidade de pensamentos?).

Parece-me que todos esses acontecimentos já carregam em si uma carga poética que explode com o poema PA LA RA com a curiosa ausência (ou a invisibilidade e silêncio) do V.

E agora, com esses poemas projetados? A mesma coisa se repetindo em outros espaços?

Seja o que for, uma bela junção entre poesia e pintura.

 

 

José Maria Dias da Cruz, artista plástico, nasceu no Rio de Janeiro em 1935. É filho do escritor Marques Rebelo. Iniciou-se na pintura muito cedo. Estudou com Santa Rosa, Aladary Toledo, Jan Zach e Flávio de Aquino. Como sua casa era muito frequentada por artistas plásticos como Pancetti, Milton Dacosta, Di Cavalcanti, Tarsila e outros, recebeu muitos conselhos. Em 1956, estudou em Paris com o pintor argentino Emílio Pettoruti. Em enquete realizada em 1996 pelo Jornal do Brasil, foi relacionado entre os setenta artistas brasileiros do século XX. Foi professor do MAM-Rio e da Escola de Artes Visuais do Parque Lage. É autor dos livros A cor e o cinza, O cromatismo cezanneano e Pintura, cores e coloridos.

 

março | 2020