©maaark

 

 

 

 
 

 

 

 

 

 

 

O que o coração não sente os olhos não veem

 

 

Pastilhas brancas

 

 

Dormi calma por duas pastilhas brancas embalada,

como quem não tem ocupada a alma por tudo que dói.

Talvez, apartada de mim, minha dor tenha andado por aí perdida

ou tenha ficado o tempo todo aqui bem próxima

estendida sobre a cadeira

como essas roupas que se despem na véspera

e se vestem sem pudor no dia seguinte.

 

 

 

 

 

 

/

 

 

Que nós somos tão mortais

não sou eu que digo,

mas essa luz que de repente veio

pairando sobre os bichos do quintal.

Ó mistério pela manhã,

a lama secando sob o sol.

As roupas arrancadas às pressas do varal

estariam hoje secas.

Agora também eu posso

gravemente dizer:

a tudo vi e assisti

com esses olhos

que a terra há de comer.

 

 

 

 

 

 

Descanso

 

 

O medo assoma

à altura de minha garganta

senti meu próprio braço minha mão

como se meus não fossem.

Os sonhos são turvos

de um lado para o outro

da cama o corpo revolvem,

enquanto do outro lado

dessa noite que é minha

tu dormes o teu próprio sono.

Causa-me espanto o sétimo dia,

não o do descanso de Deus,

mas o sétimo dia do morto.

 

 

 

 

 

 

Por onde

 

 

Por onde se move

tua vida que depois da morte

não finda, que por ter sido

é vida coisa que não se deslinda?

 

 

 

 

 

 

 

Cantiga de mal querer

 

 

Deixai estar, Senhora

vossos dentes hão de cair todos,

e, sem o recurso dos especialistas odontológicos,

as coisas mais feias — mais feias que os sapos e as

lagartixas — sairão de vossa boca murcha. Eles vos

trarão o hálito mal dos mangues que não conheceis ou dos dejetos

industriais que passam tão longe de vossa casa.

Vossos braços ficarão portugueses e vosso ventre

se encherá de banha, de celulite, de estrias,

ficando murcho e caído se tentardes emagrecer.

Vossos olhos se apagarão, e ninguém procurará neles qualquer paisagem,

exceto as da desolação.

Ficareis anêmica, e não haverá nada — nem fosfato ferroso

nem elixir de inhame — que faça

voltar o sangue

às vossas veias azuis.

Senhora, escutai bem minhas palavras:

tempo ainda há de mudardes vossa opinião

a meu respeito, pois em breve sereis horrenda,

e, olhando minhas mãos manchadas

pela baba e pela gosma de minhas

palavras, sequer perguntarei:

como é, meu Deus,

como é que fui fazer isso?

 

 

 

 

 

 

Lapso

 

 

Um homem tira um grito das tripas,

do seu flautim medonho,

enquanto esfrega seu sexo contra a porta

do carro — pau e porra lhe pesando,

terríveis como poderíamos sentir se

por um acaso se tornasse

de um dolorido espanto este lapso:

não saber o que fazer com o que cai

de repente em nossas mãos.

 

 

 

 

 

 

Dizem

 

 

Não quero nada nem ninguém:

este é, dizem, o meu querer violento, roxo,

um querer teso de alma frouxa,

que abraça tudo e todos com os braços

sempre caídos.

 

 

 

 

 

 

Outra vez

 

 

Pássaros pousados como uma nuvem sobre o mar,

até que nosso barco passou, e eles se elevaram ao céu

como uma nuvem

de mil modos alterada.

E então outra vez os vimos

à distância.

 

 

 

 

 

 

Impossível

 

 

Alvo fora e por dentro rubro

cálice delicado cálido de carne

fruto impossível

cuja polpa extravasa

para que a língua

a recolha rente à casca.

 

 

 

 

 

 

Paisagem

 

 

No bafo calor da tarde

o sobrevoo

sobre o corpo (o mesmo

próprio e

 

 

inerte)

como o voo rápido

sobre a

paisagem sem frutos

 

 

 

 

 

 

/

 

 

Minha mente crítica prosa de pregos cruzes em que penduro as roupas

que dispo (suores calafrios gritos) espelho em que meu corpo hirto

some sem deixar vestígios.

 

 

 

 

 

 

Modo

 

 

Eles dois

deitados na areia

atentos, o sol

 

sobre-

inclinava-se

 

 

de modo que agora seus olhos

podiam se perder em pássaros

 

a pino

 

 

 

 

 

 

Joia

 

 

O poema é uma joia. É certo

Por isso agrega

à gema de brilho seleto

pedras de ouro recobertas,

mas entre elas

uma que de tão opaca

ao teu olho escapa:

cisco brita cascalho entulho agrega

para que elas brilhem

e mais discretas

 

 

 

 

 

 

Gravura

 

 

Ela cabe no meu mundo como um leve toque

de asa no meu rosto

(asa

de um pássaro ver-

melho batom. Um tom

um ceú ris-

cado em claro tom

Música de sino de

cidade pequena pequenos di-

minutos dedos velozes

(meu corpo dentro de

um carro luz-me-

tal atravessa

a cidade

quando os

dedos

dela

deslizam

 

 

 

 

 

 

Vingança

 

 

Os poetas giram em torno das raparigas

em flor.

Mas eles são pesados e elas

tão leves: já não há chão sob seus pés delicados.

Lé em cima transfiguradas, elas gozam, gozam, gozam

(deles ou esquecidas deles?)

Eles estão rubros, estão roxos

(de raiva, de vergonha?).

Os poetas estão dando as costas,

os poetas estão voltando para casa,

estão arquitetando em silêncio o seu plano

de vingança:

querem gozar sem as moças,

querem florir em seus versos

como raparigas em flor.

 

As moças vão casar e não é com você

Carlos Drummond de Andrade

 

 

 

 

 

 

Exercício visual

 

 

Fique agora teu olhar

num pequeno, mínimo ponto

retido. Que não seja,

porém, teu umbigo, mas um

ponto abstrato, do mínimo traço

da menor de tuas miudezas despido.

Fique diante dele assim alienado, esquecido,

enquanto ele, obscuro, vai

mais e mais sumindo

sumindo sumindo.

Agora acorda, ergue teu olho

e rapidamente contempla

a retidão destas árvores

a claridade desse céu quase escuro

onde daqui a pouco aquele ponto

vai, luminoso, aparecer.

 

 

 

 

 

 

Via ponte

 

 

Um avião atravessa a ponte

por onde chego de ônibus.

Uma barca faz o mesmo percurso,

duplamente ao contrário

os pássaros quase pairam sobre as águas,

os carros passam correndo

disparados não sei de onde.

E a cor do céu é muito, muito baça

tão baça quanto estes pensamentos.

 

 

 

 

 

 

O que é meu

 

 

Como esses frutos miúdos, miudinhos

um punhado 

de frutos que de tão pequenos

cabem 

no espaço de uma só mão —

 

tudo que é meu é pequeno:

amadurece em espaço exíguo.

 

 

 

 

 

 

/

 

 

Um acontecimento,

não fica perdido para sempre, um dia ressurge,

como esses corpos afogados que, depois de algum tempo

no fundo, reaparecem à superfície, boiando.

E então já não há mais nada a fazer, senão enterrá-lo em poema

sem reza, sem pompa, sem flores,

e, cumprida a obrigação, com este ao menos,

dormir um pouco, enquanto ainda temos

algum tempo.

 

 

 

 

 

 

Eu e meu pai

 

 

Quando tudo é fácil, pode

ficar mais difícil

só pelo vício

do pior

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Simone Brantes nasceu em Nova Friburgo em 1963. É mestre em Filosofia e Doutora em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Autora de três livros de poemas publicados pela editora 7Letras: Pastilhas brancas (1999), O caminho de Suam (2002) e Quase todas as noites (2016). Publicou poemas e traduções de poesia em jornais e revistas como O Globo, Inimigo Rumor, Poesia sempre, Polichinello, Revista Piauí, Action Poétique, Lyrikvännen e Nuovi Argomenti. Participou de algumas antologias como A poesia andando: treze poetas no Brasil (Lisboa/Cotovia), Roteiro da poesia brasileira anos 90 (São Paulo/Global), Simultâneos pulsando uma antologia da poesia fescenina brasileira (São Paulo: Corsário-Satã) e O nervo do poema: antologia para Orides Fontela (Relicário).