Gruta



De um pesquisador de gentes que examine minha tribo secreta de um só homem só — preciso. (Esse o bilhete na entrada da gruta).







Essa nossa pequena morte nos abocanha

 

 

Podemos fazer o seguinte: (1) esquecermos que lá fora existe o sábado e não sairmos da cama; (2) esquecermos que o lá fora existe e não sairmos da cama; (3) esquecermos que nós dois somos dois e não sairmos da cama; (4) esquecermos que a bruta vida convoca e não sairmos da cama; (5) não esquecermos que essa nossa pequena morte, ah essa nossa pequena morte, nos abocanha.

 

 

 

 

 

 

Falta

 

 

O que falta, meu amor? — Não sei, falta. Uma pista do que falta, meu amor? — Não sei, falta. Sou seu, meu amor, o que falta? — Não sei, falta. Posso afastar seus fantasmas, posso obedecer a qualquer fantasia, o que falta, meu amor, o que falta? — Não sei, falta.

 

 

 

 

 

 

Jardim de inverno

 

 

Você nessa cadeira. Você curvo sobre essa mesa. Você toma seu café com leite.

Você belisca um trecho de pão. Você está quieto olhando os farelos. (E o filme acaba aqui: sem magia, bem lá em um muito afastado jardim de inverno).

 

 

 

 

 

 

Velázquez

 

 

Conta-se que o pintor gay inglês Francis Bacon estava sonolento em seu quarto quando do eixo central da noite desaba sobre ele um ladrão que em descuido tombou das telhas: 

os dois se viram, os dois se amaram: os dois disseram sim e sim um ao outro: eram, pois, dois ladrões, sendo um deles, Francis Bacon, o mais ousado: roubara antes aquela sua outra parte e sem cessar: roubara Velázquez.

 

 

 

 

 

 

Deus

 

 

Não conheço ninguém que não haja visto deus pelo menos uma vez. Nascera o filho: deus. Invadira o campo: deus. 4. Desfizera-se do sapato: deus. Ousara viver: deus.

 

 

 

 

 

 

Desce e descansa

 

 

Não creio no tempo, já disse. Não creio em que morrer acerte algo na ordem cósmica, já disse. Creio em que tudo seja matéria movida a fumaça e sensação. Creio na carne. Creio na vianda de Eros que, quando em mim, atinge por vezes o céu e, ali, desce e descansa.

 

 

 

 

 

 

Isso é orar

 

 

O ancião conduz seu focinho ao topo da escadaria, isso é orar. O ancião monta um círculo de ovos a seu redor, isso é orar. O ancião roda com sua secreta saia tingida, isso é orar. O ancião dispõe seu peso sobre camas entregue, isso é orar. O ancião já não quer, mas faz, isso é orar.

 

 

Prometo

 

 

Abriu a garrafa. Disse esperemos respirar. Moveu a taça com ternura. Mencionou alguma coisa sobre ligas entre cor e vida. E mais algo sobre o perfume do líquido. Provou. Você gostará, prometo.

 

 

 

 

 

 

Morri

 

 

Morremos como morrem os cães e as datas e, como os cães e as datas, sempre haverá mais cães e mais datas, e, no entanto, o morrermos não nos extermina, daí talvez o cansaço incluso nesse sem fim do morrermos, e assim ficam outros de nós por toda parte com as mesmas perguntas e hesitações: sequer no morrermos finda o alerta diante do que fazer. Antes de ontem, morri.

 

 

 

 

 

Sem mãe

 

 

A mulher magra com sua criança recém-nascida e magra disse preciso de uma lata de leite, eu não dei.

Na madrugada, a criança recém-nascida e magra abriu os olhos antes fechados e com a voz da mãe agora ausente disse quero minha lata de leite que de tarde me foi negada.

Acordo, entro em supermercado 24 horas, pego sete latas de leite e saio às ruas de Copacabana atrás da mãe, da criança, de alguém para desfazer-me de algumas de minhas matanças.

Sequer os mendigos de sempre, encontro.

Uma lata de leite subtraída dos que dela necessitam pesa demais.

Pesa bastante, mas pesa menos do que as sete latas dentro da sacola acusando você por todos aqueles seus muitos piores atos.

Não retorno a casa, tenho medo da criança recém-nascida e magra ao lado da cama esperando-me para dizer agora é tarde.

Aguardo em um banco da orla que amanheça: amanhece, eu ali e as sete latas.

Abro uma, um punhado de leite levo à boca. Usando a saliva, estou mamando.

Mamando sem os braços de mãe, mamando sozinho. 

(Adormeço, nutrido e sem mãe).

 

 

 

 

 

 

Era verão quando



A senhora parece demais com uma pessoa que conheci, mas não sei de onde, disse respeitoso o senhor à senhora na fila do caixa do supermercado. Ela respondeu ter a mesma sensação quanto a ele e não sabia também de onde ou como.

Foi isso o que ali se passou e o que ali se disse. 

O senhor e a senhora seguiram para suas casas levando ambos, dentre outras coisas, leite e biscoito para, sozinhos, à noite, entregarem-se à hora habitada da televisão.

Na madrugada, como se um tigre rugisse sobre pedras, os dois deram de frente com a resposta de que se haviam amado e que fizeram confuso sexo em tempos de primeiro amor. Era verão quando.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Roberto Corrêa dos Santos é semiólogo, teórico da arte, escritor, artista. Atuou como professor de teoria da arte e de estética no Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, tendo sido professor de semiologia e de teoria da literatura na PUC-Rio e na UFRJ. Publicou e vem publicando livros sobre teoria, arte, literatura, livros de poesia, livros de artista. Dedica-se a pesquisas acerca das relações entre escrita e arte visual.