©milos duskic

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 



Nunca em tempo algum de sua História o Brasil foi tão corrupto, violento e catastrófico como nas últimas três décadas. O desenvolvimento coincidiu com o abuso de poder. Amealha Ruy Castro: licitações fraudulentas, compra de votos, privatizações variadas, estelionato eleitoral, obstrução da Justiça, sítios, tríplexes, lavagem de dinheiro, formação de quadrilha, peculato, petrolão, pedaladas fiscais, propinas, déficits públicos, superfaturamentos, malas de dinheiro, compra de sentenças, rachadinhas, laranjas, associação com milícias, práticas de filhocracia, cultura da impunidade... Ao mesmo tempo em que vieram a conhecimento público as mazelas nacionais com a realidade nua e crua dos problemas sociais do país, pondo em contraste os disparates entre regiões, são flagrantes os inúmeros crimes cometidos por políticos de que o mensalão tornou-se símbolo e a Lava Jato sua marca registrada.

Este é um país que aprovou a criação de aeroporto para extraterrestre, que construiu hospital no meio do mato, de município que vetou o uso de camisinha porque estava perdendo repasse federal com a queda da população, e de prefeito que decidiu de o cidadão não morrer por falta de vaga no cemitério. O mesmo país que proibiu o uso de motosserra aos domingos e feriados e a comercialização de brinquedos que disparam espuma ou luz de laser. É o Brasil cuja Constituição de  32 anos teve identificada pelo Congresso 112 leis que deveriam ter sido criadas, mas que não foram até hoje, como as regulamentações para greve de servidores públicos, crimes de terrorismo, licença paternidade, produção regional para rádio e TV, trabalho escravo e vacância de presidente da república e vice. Vive-se sob estupefação num Brasil no qual dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) mostram que, enquanto no país avança a presença nas residências de bens duráveis, como eletrônicos, boa parte de 14 Estados fica paralisada em serviços como água, esgoto e coleta de lixo, sob alegação da falta de recursos, quando o governo federal canta internamente e decanta para investidores no exterior sermos a 7ª economia do mundo.

Enquanto a presidenta Dilma Rousseff discursou para fantasmas numa ONU indiferente já ninguém pode ignorar que o Brasil se transformou hoje no principal alvo de criminosos digitais na América Latina, como informa a Veja. Hoje, Bolsonaro fala muito e faz pouco caso das decisões radicais imprescindíveis ao país para haver mudanças e atender demandas públicas. Mesmo alcançando a sétima economia do planeta, o Brasil ocupa o 1º lugar entre as nações latino-americanas mais atingidas, com 50,2% do total de fraudes ou ataques ocorridos em 2011. De lá pra cá pouco ou nada melhorou o país.

Tinha toda razão o ex-presidente francês De Gaulle de afirmar que o Brasil não era um país sério: a recepcionista Simone Tristão Pereira, supostamente especialista em marketing de relacionamento, namorada do ex-ministro José Dirceu, réu condenado a 10 anos e 10 meses de prisão por corrupção ativa e formação de quadrilha no escândalo do mensalão, conseguiu, por seu intermédio, emprego no Instituto Legislativo Brasileiro, órgão do Senado Federal, com salário de 12.800 reais, horário flexível e pouco ou quase nada para fazer, segundo também a Veja. Aqui os gastos com saúde das famílias aumentaram 54% em uma década. Os médicos foram exilados, mas a medicina brasileira carece de médicos, de órgãos de saúde, de maior interação entre pacientes e o setor de atendimento. O que dizer de quadrilha suspeita de lavagem de dinheiro e desvio de fundos de pensão municipais usar prostitutas "pastinhas" para cooptar prefeitos e gestores para o esquema criminoso contra o dinheiro público? E as greves que se sucedem, vão parar quando? Durante a campanha eleitoral municipalista, por ocasião das promessas eleitoreiras? E quando é que o PIB vai deixar de ser pibinho? Lula disse que o Brasil passava por uma "marolinha", quando a situação era a de um furacão. Num dia 7 de setembro, a então presidenta falou na TV que "o pior já passou". Será que passou mesmo? Ou Jair Bolsonaro vai manter aberta a boca do inferno com apoio irrestrito dos militares?





Quem leu meu livro Cai-n'água — a maior tradição do carnaval de Oliveira (2007, à venda na sede da entidade, à Rua Baptista de Almeida) se lembra que afirmo ser ele um simulacro descendente do rompimento profano da representação triunfalista. O que vale dizer que o Cai-n'água tem origem barroca nas procissões da Semana Santa através dos seus ancestrais de mésalliance (a mistura do sagrado com o profano), o sábio e o tolo, o rei e o escravo, o grande e o pequeno, o alto e o baixo, estabelecendo-se com ele o arauto da Festa de Momo, o livre contato de todos com tudo, uma vez suspensas as leis e restrições que antes separavam senhor e criado ou as classes sociais.

Da Europa, veio a influência forte do farricoco, presente, no Brasil, desde os festejos coreográficos do Triunfo Eucarístico, na Ouro Preto de 1733, por ocasião da inauguração da nova matriz de Nossa Senhora do Pilar, na antiga Vila Rica; como também no grande evento do Áureo Trono Episcopal, de 1748, quando da posse do frei Manoel da Cruz como bispo da diocese de Mariana.

Em ambos os eventos fez-se notar o mascarado com seu traje que ainda hoje lembra o dominó, em bando, espalhando então poemas para o povo para avisar sobre as célebres festividades. Essa figura, que através do papangu pernambucano de Bezerros e do Clóvis carioca de Santa Cruz, veio dar no centenário Cai-n'água oliveirense, vige com força e vigor porque tem tradição popular.

O Cai-n'água, ainda que tradicional em sua postura, indumentária e função pública, se reinventa no anonimato, e quando se acha que ele vai desaparecer por pressão do consumismo, da influência sertaneja ou baiana, por exemplo, ele se fortalece com a própria história e se impõe com a força perene de quem sobrevive à Fênix pela graça de sua folia junto ao povo.

O Cai-n'água é o folião da periferia que vem animar também o carnaval do centro da cidade. Ele é qualquer pessoa. O doutor e o cidadão comum. E é sempre uma surpresa. Um encantamento que se oferece por descobrir. Ele traz sua brincadeira e o seu deboche anônimo de todos os bairros, com sua voz rouca ou em falsete. Ele se traja do chitão mais simples ou de cetim, com as caveiras que relembram suas origens mais remotas nas procissões de Braga, Portugal, assim como as de Sevilha, na Espanha; como ainda a figura imponente do farricoco que acompanhava procissões na Oliveira antiga e ainda hoje empunha tochas na Semana Santa de Goiás Velho, em Goiás. Elemento peculiar da cultura local, fomentador do imaginário popular, o Cai-n'água mantém-se genuíno (ao contrário do Clóvis, ou bate-bola, no Rio, que se tornou híbrido e resultante dos processos de interação com outros elementos massivos da cultura de massa, cujas turmas são heterogêneas e dependentes de decisões de grupos bairristas).

Sem o Cai-n'água não há carnaval de rua. Gente feliz sempre se veste de Cai-n'água. E sempre sai em bloco. Inclusive com a muzangas. É ele que sustenta a folia todo o tempo através de mascarados que transitam espalhando alegria e ludicidade. Porque o Cai-n'água é o jogo do carnaval. O jogo de adivinhar quem é você, como pergunta a música de Chico Buarque. O jogo de se deixar iludir pela fantasia. O jogo de faz de conta que recarrega a bateria do sonho no cotidiano dos dias.

Pelo dominó, a máscara, as luvas, a voz e o andar dissimulados, mudo ou cantando uma marchinha, o Cai-n'água tem esse poder de agregar em si uma expressão humana que contagia pelo anonimato. E assim ele vige sua capacidade de fazer bem a todos, pois cria, com exclusividade oliveirense, uma dinâmica carnavalesca que dura todo o reinado de Momo, não apenas um dia ou a apoteose de uma noite. Por isso o Cai-n'água é uma performance constante no carnaval, não uma atração com tempo limitado, mas uma opção sempre instigadora para brincar com todos todo o tempo. E é isso o que faz a diferença do carnaval de Oliveira.


©angel boligan


Segundo pesquisa realizada na Inglaterra, observar obras de arte proporciona o mesmo prazer de estar apaixonado. A observação provoca aumento de uma substância química associada ao bem-estar, a dopamina, no córtex-frontal do cérebro. Em resumo: a beleza faz bem. Vinicius de Moraes tem razão: "As feias que me perdoem, mas beleza é fundamental". O problema está em as pessoas observarem obra de arte. Contemplar: permitir que a beleza seja dentro de si um templo. Porque hoje, em relação às artes, "todos os homens são nazistas", asseverou o prêmio Nobel Isaac Bashevis Singer. O extermínio da sensatez, da contemplação, da sensibilidade, condiciona até a sobrevivência humana. Por isso, existir hoje o contentamento com o fragmento, o efêmero, o derruído, o feio bem vendido, o sentimento manifesto por coisas massificadas em nível de produção, com o fugaz, o modismo, o instantâneo, com o que pode emocionar por alguns instantes e em seguida deixar de ser.

Além do capitalismo selvagem, que engole a si mesmo na ganância econômica, e da escravidão do homem ao tempo vendido e consumido como mercadoria, são diversos os fatores provocadores do dissídio entre artes e o ser humano. A música sertanoja, a TV, sobretudo o "padrão" da Globo, Paulo Coelho, festas de devassa ecológica como a farra do boi e, claro, políticos, impedem uma relação mais honesta, estética e transparente com as artes e a cultura. Prova irrefutável é a perda cada vez maior da referência do folclore, da cultura popular. Não se conhece mais o que o povo faz, pensa, senão em raras cristalizações, que se mantêm como focos de resistência contra o apagão popular. Redes como TV Escola, Brasil, Cultura, Educativa, programam arte e cultura, mas quem vê? Cultura e arte quebram a indiferença da camada de mármore da consciência, porque tanto fazem sentir prazer como levam a pensar. E o povo, via de regra, não quer mais pensar. Quer ser pensado pelo sistema que o conforma numa camisa de força. Com a atual projeção política, em que o Congresso Nacional é a "obra" mais cara do país, mantida pelo eleitorado de aluguel, em que o errado é que está certo, em que os ladrões oficiais são os heróis, em que os políticos que pintam e bordam são os "artistas" da canalhice e da impunidade, o povo brasileiro dança conforme a música e é a própria razão de ser da cultura inútil. 

A arte é "instrumento da sociedade" (Vigotkski) contra a barbárie. É tal como expressa uma música de Chico Buarque, de 1980: "Qualquer canção de bem/ algum mistério tem/ é o grão, é o germe, é o gen/ da chama/ e essa canção também/ corrói como convém/ o coração de quem não ama". Observe o(a) leitor(a): as pessoas que não gostam de arte são as mais rudes, mal-educadas, violentas, sinistras, turronas, mal-humoradas, infelizes e as que mais causam problemas à sociedade.

O filósofo medieval Giambattista Vico anota em sua Ciência Nova: É preciso imprimir sentido e paixão às coisas insensatas". A arte afeta. Por isso, ela é tanto um orgasmo metafísico quanto um pé no saco do poder. Morani completa: "Toda percepção é acompanhada de consciência". A arte, na esteira de Etienne Bonnot, abade de Condillac, em seu imprescindível Traité des sensations (1754) é "sensação transformada". Condillac é irreprimível ao dizer que o homem se move em função da arte "na proporção em que acredita descobrir ali prazeres a procurar ou dores a afastar".

"A arte é assinatura da civilização", diz Bervely Sills. A arte tem, pois, o poder de o homem interagir com a (sua) vida, com o que resta da natureza, com o "desejo de novas necessidades". A de sobreviver, por exemplo. Arte é catarse, empatia, sinergia, superação do imediatismo, da doidice cotidiana. E é, também, segundo Georg Lukács, "uma crítica da vida, da sociedade, a defesa moral dos indivíduos". A arte dá prazer porque é lúdica: ela se opõe à ideia de morte. Ela é a liberdade contra as amarras da razão. Ela existe para que o homem não morra da verdade, filosofou Nietzsche. A verdade de saber que somos finitos, mesquinhos, ignorantes, iludidos por sonhos — nada. "O prazer dos grandes homens é fazer outros felizes", foi o que disse Pascal. A arte, portanto, tem essa missão desafiadora: tornar o homem digno de Deus, o grande artista do universo. E de fazer com que o homem permaneça humano.




©milos duskic


Não é nada fácil ser cristão nos dias de hoje, quando o mundo vive guerras intermitentes, o egoísmo do capitalismo selvagem predomina a ponto de muitos venderem até a alma, a descrença nas religiões, o desentendimento e o conflito humanos a partir da experiência do lar, a mais deslavada corrupção, os tentáculos do agnosticismo e a incidência crescente do ateísmo, a ambição do materialismo, a desertificação da espiritualidade, a absoluta falta de ética, a desordenabilidade geral do mundo, o fato de a existência ser meramente acidental, como assinalou Schopenhauer, a globalização da pobreza como falta do essencial para boa parte da população, a mediocridade da transcendência, a falta de segurança, as incertezas do futuro, o compromisso meramente superficial com Deus, o descomprometimento com a qualidade de vida ante os problemas ecológicos, a esperança alimentada com ódio e ressentimento. Por exemplo.

Vive-se sobre o impacto de fatos contundentes: um, que apregoa a veracidade de que "a sociedade precisa de Deus"; outro de que "a incapacidade política dos homens pós-modernos provém da mesma fonte de sua incapacidade moral" (Zygmunt Bauman). Ser humano na atualidade significa, por isso, experimentar o medo.

Com base em palestra do monge beneditino Anselmo Glün, Maria Aparecida de Cicco pontua que a condição de ser humano é hoje o principal desafio para o cristão, porque Cristo assumiu a humanidade e a viveu integralmente, mostrando que não se pode fazer a vontade de Deus na Terra a não ser através da humanidade, pois olhar para a humanidade de Jesus é olhar para o que Deus espera de nós, seres humanos.

Essa reflexão faz todo sentido. De Cicco, no entanto, assevera que o ser humano atual é assombrado por três medos fundamentais: pelo medo de ser determinado pelos outros, obrigando o ser humano a abrir mão do seu livre arbítrio, numa época em que impera o individualismo, quando muitos têm a vontade de Deus como empecilho à liberdade individual e desconhecem que Ele vem dar o sentido à nossa existência.

O segundo é o medo da fome, de não ter o necessário para sobreviver. A reflexão, nesse sentido, há-de levar o cristão a pensar que o fato de ser pobre implica em não ter nada, não pensar nada e não querer nada não significa, todavia, que ele se abstenha de bens e de não querer possuir Deus.

A pobreza evangélica, diz De Cicco, é aquela que nos leva a não considerar os bens como propriedade exclusiva e mais ainda não considerar Deus como nossa propriedade. A riqueza tem a capacidade de reforçar no ser humano o apego e a induzir pessoas a usar máscaras, o que provoca o vazio interior, completa a exegeta.

O terceiro é o medo da solidão, de não ser amado, de ser abandonado. Ao lutar contra essas situações, o ser humano muitas vezes faz por agradar os outros de tal modo que se esquece de seus próprios valores e, com isso, perde a própria identidade. "Amai ao próximo como a ti mesmo" (Mt, 19,19). Cristo ensina assim que o amor próprio é um bem que fortalece o conhecimento de si mesmo. É a base para a construção do amor de Deus.

A integridade cristã de hoje pressupõe também desenvolver a integração com o semelhante, cultivar a amizade sincera, a criatividade como meio de expressão pessoal em função de valores genuínos da religiosidade, a espiritualidade mística para experienciar Deus, inclusive, com silêncio e meditação; ser guardião do sagrado e do espaço sagrado da entrega sem o sentimento de culpa.

O principal objetivo da mensagem cristã, também hoje, está no fato de que Cristo morre e ressuscita e nesse gesto mantém viva a esperança, com intercessão divina no humano para garantir o direito sublime à vida eterna.





Além de textos bíblicos, que registram pragas e acontecimentos extraordinários na natureza, a exemplo do Apocalipse, são diversos os escritores que imortalizaram obras em que a humanidade padece de doenças. É o caso do Decameron, de Giovanni Bocaccio, autor que registra o flagelo da peste bubônica na Florença de 1348, quando dez nobres se confinam decididos a contar histórias. Na atualidade a situação se repete na Itália, país europeu com maior pandemia de coronavírus, obrigando a população a ficar em casa praticando leitura. Em 1826, Mary Shelley (autora também de Frankenstein) publicou O último homem, descrevendo o mundo sob pandemia e quando os líderes questionam "o que deve ser feito diante de uma crise global de saúde pública?".

Outro autor a versar sobre problema endêmico é o franco-argelino Albert Camus com o livro A peste (1947): a cidade de Oran (observe-se a coincidência com Wuran, epicentro chinês da doença!) é infestada de ratos e é ocupada pelo nazismo.

Ensaio sobre a cegueira (1995), do português José Saramago é outra obra sobre o terror provocado por uma epidemia de cegueira branca que mostra aos leitores a que ponto pode cegar o caos: levar a população a invadir prateleiras de supermercados atrás da estocagem de produtos como papel higiênico e álcool em gel. É só o início do conflito.

Há inclusive uma História contada pelo vírus, de Stefan Cunha Ujuar, e uma Cidade febril — cortiços e epidemias na corte imperial, de Sidney Chalahoub, Peste e cólera, de Patrick de Ville e Os olhos da escuridão, de Dean Koontz. Há outras indicações na literatura: Em A máscara da morte vermelha, conto de Edgar Allan Poe, o príncipe Próspero despreza as alusões à peste negra e resolve dar uma festança trancando mil amigos num castelo e deixando a miséria fora. Aqui, qualquer semelhança com o Brasil atual é mera coincidência.

O tema colérico é caro a Gabriel Garcia Márquez: se em Cem anos de solidão o autor colombiano e vencedor do Nobel da Literatura trata da peste da insônia que contamina os habitantes de Macondo, em O amor nos tempos de cólera dispensa maiores explicações: é a história profunda de Florentino Ariza e Fermina Daza num período em que, fins do século XIX, no Caribe, há guerras, doenças, principalmente cólera, hábitos, preconceitos Ambas as obras revelam a admiração de Garcia Márquez por Um diário do ano da peste de Daniel Defoe. Álvaro da Costa assinala que esse livro é, há 300 anos, um modelo não só para abordagens sobre epidemias como também do registro de informações jornalísticas utilizando-se da narrativa ficcional. E recomenda que o leitor lave bem as mãos depois da leitura.

Na opinião de cientistas, esses livros prestam-se a levar o ser humano a se repensar, a aprofundar o conhecimento de quem somos, o que estamos enfrentando, sendo uma forma de esclarecimento por terem um potencial didático e um conteúdo que dá forma à experiência bioética.

Deve-se registrar também que autoras como Ella Berthoud e Susan Elderkin criaram a Farmácia Literária e Biblioterapia, que recomendam livros para curar doenças.





Bibliófilo contumaz, recebo dezenas de livros que vão se avolumando na mesa depois de lidos. As estantes já não cabem mais as leituras que registram o imaginário humano. Não há livros bons e livros ruins. Há livros com cuja leitura a gente se identifica ou não; como há livros de referência e exemplares. Memorial de Minas, por exemplo, de Kener Marden, é uma estória que se passa em Oliveira, relendo a mineiridade através de tradições como o bico da chaleira, relíquias, fragmentos de lembranças, olhares profundos sob personagens que vivenciam um passado fecundo. Marden sabe, por ter aprendido com Carlos Drummond de Andrade que "as montanhas escondem o que é Minas", donde só mineiros saberem o que é o segredo chamado Minas. Cafeicultura, o lugarejo Oliveira gerando uma paixão nos personagens que morrem de amor, os nomes dos becos e de ruas, as consequências locais da Segunda Guerra Mundial, as dores do mundo e do amor, a presença da Gazeta de Minas no registro da história, o palacete das águias, a Sá Biquinha, a aparição do Beato Santinho e dos afazeres religiosos de quando a igreja discute política, padre Ananias na cabeceira de uma cama, o movimento para pôr abaixo a ditadura, a Praça XV, o Cai-n'água, os traços dos Pires e dos Laranjo, o bar Rei dos Picolés, anjos barrocos, banhos de rio na fazenda, os sentimentos que já nascem confusos, as voçorocas de Morro do Ferro, a Festa de Nossa Senhora do Rosário, as ocasiões em que Lazinha alisava as madeixas, os planos políticos entre Eulália e Afonso, Cabral, Gioconda, padre Bento e a luta pela paz através da religiosidade, Goraciaba, Julieta, Helena, em torno de quem tudo acontece — são situações da tessitura do romance escrito com linguagem leve mas profunda, em que o autor sabe tirar proveito de cada protagonista e coadjuvante, de cada referência histórica do município. Memorial de Minas é um grande livro, o suficiente para situar Kener Marden como um autor de excepcional cepa literária.

Outro livro de qualidade é Tertúlias quixotescas, mais especificamente de crônicas de Olavo Romano, Francisco Bastos, Epiphânio Camillo, Octávio Elísio, Edmundo Carvalho, Paulo Miranda e William Santiago. Os autores demonstram muito talento na produção de narrativas. a maioria vivenciadas, marcadas estilisticamente por fatos que surpreendem os leitores pelo bom humor e intrigas típicas do gênero crônica. Francisco Bastos tem um estilo regado à mineirice, nascido que foi em Oliveira e apreciador confesso de Guimarães Rosa. Seus textos são leves e têm a garra de prender o leitor com maestria. Olavo Romano já é um autor que se impôs pelo que há de mineiridade através de "retratos da Minas profunda." Seus textos têm o frescor da surpresa bem-humorada de quem conta um causo.

Aldravia na via de florescer é uma coletânea poética de jovens de Mariana, organizada por Giselli Barros, reunindo a produção de alunos do Colégio Fecha. Aldravia é uma forma poética criada em 2010 na terra de Alphonsus de Guimaraens. o poeta de "Ismália", por Gabriel Bicalho, J. B. Donadon Leal e J. S. Ferreira. Consiste em um poema sintético com 6 versos, univocabulares, preferencialmente metonímicos. O desafio é apresentar muitas significações em poucas palavras, em face da liberdade interpretativa do leitor, que poderá compor leituras diferentes da aldravia sem a imposição semântica do autor. Exemplo: "poetas plantam palavras e colhem poemas" (Ana Beatriz Ferreira).

Dos Santos a Saga, de Tereza Malaquias, é a genealogia romanceada da vó materna desta autora de Itapecerica, na qual tece loas à sua terra e expressa memória prodigiosa e muita pesquisa. O livro mantém viva a tradição da onomástica familiar, da religiosidade, das virtudes de antanho, dos feitos heroicos para exemplo das gerações mais novas. O "familismo" é uma característica sociocultural arraigada, desde os tempos feudais, marcando épocas com momentos inesquecíveis da história de famílias especiais da região.

Aproveite o isolamento social e leia muito.


 

 

 

 

julho, 2020

 

 

 

CORRESPONDÊNCIA PARA ESTA SEÇÃO

Av. Américo Leite, 130 – Centro

35540-000 – Oliveira/MG