©gerd altmann

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 



O livro Grãos de filosofia, sementes de poesia, de José Nilton Silveira Filho põe por terra o aforisma de Hegel que diz que "o artista não precisa de filosofia". Fosse assim e não teriam sentido livros como Ilíada e Odisseia, de Homero, além de quase toda a obra de Fernando Pessoa. O autor é um filosoeta. E filosoeta é um filósofo impulsionado pela poesia e um poeta impulsionado pela filosofia e, em ambos os casos, repercutem em sua obra o roteiro clássico das questões metafísicas, que partem do problema do ser. Tudo com a vontade de pensar profundamente, partindo-se do desconhecido no conhecido para o reconhecido em si mesmo, destacando-se determinadas tendências ou simpatias na especulação filosófica como em Pessoa, que assume na religião e na lógica uma atitude pragmático-vitalista mais afinada com Nietzsche.

O filosoeta expressa uma filosofia da arte nos planos da reflexão ao mesmo tempo psicológica, estética e gnosiológica sobre a poesia e a filosofia. O filosoeta fixa uma tipologia do lirismo reflexivo, conforme a função da coisa em si perpetrada pela sensibilidade, pela inteligência e pela imaginação, que trazem à tona a realização individual e histórica do fenômeno poético concentrado em um sentimento ao questionar a coisa em si mesma, quando o poeta transcende o conhecimento dessa coisa e exprime sobre ela o sentimento.

O filosoeta tem uma tendência a conceituar em si as coisas, valendo-se do conhecimento especulativo, o que resulta numa narrativa via de regra surpreendente.

E ele faz isso mediante diálogos entre sentimentos opostos, perspectivas divergentes e sensações diferentes (p. 17), com o objetivo de "compartilhar questionamento e repensar o próprio sentido e a importância que tem esse estilo literário na história da humanidade" (p. 18). A poesia filosófica torna-se assim um catálogo de fatos (d)escritos e das experiências vivenciadas. Nela os poemas são "a veia e a artéria da cognição humana, expiração e inspiração do sopro da vida" (p. 37). S. Tomás, comentando Aristóteles, diz que o filósofo se assemelha ao poeta: pensar e escrever tem algo em comum — a essência do homem. Pensar e escrever, segundo Pieper, fazem parte ou justificam a antropologia filosófica. O que difere a filosofia da poesia é que a poesia apreende a realidade em conceitos que não falam à imaginação, enquanto a poesia pelo som, ritmo, rima, fluxo da linguagem atinge e apresenta a realidade de modo figurativo ou representativo. Ao trabalhar a linguagem, como faz José Nilton, o filosoeta torna-se poeta filósofo. Vide o exemplo de Fernando Pessoa. Ou George Orwell quando escreve em 1984, que "os melhores livros são os que nos dizem o que já sabíamos". Tanto o poeta quanto o filósofo recusam-se a ter uma visão exclusiva e acabada do fato bruto, de um mundo de rotina onde tudo funciona "normalmente." Ambos se voltam para o maravilhoso e o admirável caráter do "ter" e do "ser".

É um jogo — nem tanto o banal da necessidade imediata, nem tanto a fuga do realismo cotidiano. Poeta e filósofo dão a conhecer a vida da sensibilidade e não raro a verdade da realidade subjetiva. O filosoeta compele a externar o estético e o ético, adota uma postura tanto platônica quanto realista das coisas em si. Na poesia a teoria é puramente receptiva da realidade metafísica, desde que o homem não se torne cego e insensível ao maravilhoso do fato de que alguma coisa existe. O filosoeta procura desvendar o mistério das coisas simples aliado à admiração do que as coisas são em si mesmas, enquanto o verdadeiro sentido da admiração, o que o mundo é mais profundo, mais amplo e mais misterioso no sentido do que falta à revelação. Ambos sabem que "há silenciosos sermões e obscuras interrogações" (p. 53) nas coisas que podem e precisam ser esclarecidas. Como em Eratóstenes, "Grãos de filosofia, sementes de poesia" - "a vontade venceu a mediocridade, a presença de espírito venceu a guerra, a ignorância foi vencida pela verdade" (p. 127). O livro está impregnado de uma concordantia idearum em seu caráter puramente subjetivo. É um livro que contribui para o leitor crescer em humanismo.





©aroeira


A julgar pela Bíblia, desde quando Eva induziu Adão a cometer o pecado original, a mentira é muito antiga e tem poder. Ela é tão importante, a ponto de constar dos Dez Mandamentos. A mentira, segundo João 8:44, é filha do diabo. Por isso, adverte Mateus (7:15) "cuidado com os falsos profetas que vêm até vós vestidos como ovelhas, mas, interiormente, são lobos devoradores". A mentira é questão também filosófica pois "a veracidade nas declarações é o dever formal do homem com relação a cada um, por maior que seja o prejuízo que dela possa resultar", na visão de Kant. Santo Agostinho relativiza a mentira: "Quem enuncia um fato que lhe parece digno de crença ou acerca do qual formava opinião de que é verdadeiro não mente, mesmo que o fato seja falso". Hanna Arendt, de modo contraditório, traz a questão para a política: "As mentiras sempre foram consideradas instrumentos necessários e legítimos, não somente no ofício do político ou do demagogo, mas também do estadista". Nietzsche acreditava que "as convicções são inimigos mais perigosos do que as mentiras."

Napoleão, por sua vez, defendia que "a história é um conjunto de mentiras sobre as quais se chegou a um acordo", opinião próxima à de Goebbels, maior defensor de Hitler: "Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade". Marx dizia que a ideologia é o conjunto de valores da classe dominante imposto como universal, criando uma realidade falsa. Na psicanálise, a mentira é questão central: Freud a entendia como manifestação de desejos inconscientes, portanto, também como verdade. Nas fábulas infantis tem-se diversas leituras como nos casos de Pinóquio, Pedro e o lobo, Chapeuzinho vermelho, entre tantas outras.

No início do século Jonathan Swift escreveu que "as mentiras voam e a verdade vem atrás mancando". Segundo Mark Twain "a mentira dá a volta ao mundo enquanto a verdade calça suas botas". É preciso, diz Sérgio Augusto, conter o saldo inevitável do modelo de negócio dos grandes monopólios digitais". "Ou agimos imediatamente para proteger o ecossistema de notícias e informações ou seremos destruídos por uma catástrofe no mercado de ideias — o infopocalipse", diz Aviv Ovadya, da Universidade de Columbia.

Boa parte da literatura e da arte é construída em torno da mentira: Capitu mentiu?, questiona o economista Luiz Guilherme Piva. O grande cineasta Federico Fellini, diretor entre outros do filme Amarcord, dizia que "a mentira é sempre mais interessante do que a verdade". A mentira campeia o cancioneiro popular brasileiro como "Pra que mentir", de Noel Rosa, "Dom de iludir", de Caetano Veloso e "Samba do grande amor", de Chico Buarque. A mentira ganhou status de fake news na pós-modernidade e um de seus maiores praticantes é justamente o presidente Jair Bolsonaro: ele afirmou, no início da expansão da pandemia no país, que a Covid-19 estava indo embora no início de março, quando na verdade já contabilizava dezenas de milhares de óbitos.  Donald Trump é outro "perito" em contar mentiras com a certeza de que não será punido pela própria omissão.

Colaboradores de Bolsonaro incluem fake news em seus currículos, como cursos de pós-graduação que não fizeram, como é o caso de Ricardo Vélez Rodríguez, Abraham Weintraub e Carlos Alberto Decotelli, indicados todos logo para o MEC! Além de Ricardo Salles, destruidor do meio ambiente e Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, intitulada "mestra em educação e direito constitucional". Dilma Roussef acrescentou a seu currículo Lattes imaginários mestrado e doutorado em Ciências Econômicas. A mentira tem perna curta. Não colou.





©stocksnap


A arte sempre ajudou a elucidar a história da medicina. E vice versa. O médico oftalmologista Marcelo Lopes Costa é autor do livro Estórias da história da medicina, onde coteja fatos muito interessantes a respeito do assunto. Pesquisador profundo do tema em enciclopédias e livros encontrados em sebos, Lopes Costa reúne exemplos que ilustram bem os males que assolam artistas, escritores, músicos, poetas e tantos outros mestres, caso de Fiódor Dostoiévski, filho de pai cruel e dominador e que desde a infância fora acometido de epilepsia. Em sua obra-prima Os irmãos Karamazóv, o rico senhor Fiódor Pavlovith, em noite de embriaguez, violenta Lisavieta, uma débil mental imunda que vagueia pelas ruas em busca de caridade alheia. Ela acaba por assassinar o pai tirano.

Guimarães Rosa coloca na boca de Miguilim todo o seu fascínio de criança míope ao usar óculos pela primeira vez. Emily Brönte, que se tornou imortal com o livro O morro dos ventos uivantes, descreve a hemoptise do frágil e pálido adolescente Linton que, como os sete irmãos da autora, também é consumido pela tuberculose.

O que dizer de Van Gogh que peregrinou de hospital em hospital para tratamento psiquiátrico, tendo cortado a própria orelha em arrependimento de desavença com o amigo Gauguin e pôr fim à própria vida com um tiro no peito? Henri de Toulouse-Lautrec tinha por deformidade as penas curtas e tortas, tendo sido por isso motivo de hilaridade dos parisienses, razão de ter se acabado em álcool com apenas 37 anos de idade.

Ludwig van Beethoven tornou-se completamente surdo no auge de sua criatividade; desenvolveu por isso um temperamento tímido, desconfiado, mal-humorado e com tendências suicidas. Sua revolta com a surdez está estampada nas cartas a seu irmão Carl.

Luís de Camões perpetua no Canto LXXXI de Os Lusíadas a descrição do escorbuto frequente nos marinheiros de viagens prolongadas, privados da ingestão de frutas frescas. Gil Vicente, por sua vez, fornece dados da medicina popular quinhentista na sua Farsa dos físicos: "Tome ora um suadouro/ de bosta de porco velho/ e com unto de coelho/ esfregai o pousadeiro...".

O exemplo mais brilhante, prossegue Lopes Costa, é o da história da sífilis, cuja teoria americanista teria sido levada para a Europa pelos seus descobridores que originaram o trocadilho: "Colombo civilizou a América e sifilizou a Europa".

Mozart foi diagnosticado com a doença de Basedow-Graves (hipertireoidismo mais exoftalmia que lhe custou a vida aos 36 anos). Aleijadinho tinha lepra e ainda assim deixou um legado genial. Pedro Nava cometeu suicídio, assim como Mário de Sá-Carneiro. Mestre Guignard tinha lábios leporinos. Hoje existe inclusive a neuroarte — invenção recente associada a artes plásticas e neurociências, que se espelham no exemplo de Leonardo da Vinci através da neuroanatomia, reunindo também o conhecimento de grandes mestres da medicina como Vesalius e Albinus.

Na pós-modernidade registra-se uma considerável quantidade de João de Deus a cometer crimes sexuais, corromper o juramento de Hipócrates e a comprometer a missão nobre da Medicina.





©nino carè


Não desejo a ninguém desmanchar uma estante com centenas de livros cuja parede mofou e expôs a sua fragilidade. Ninguém merece. O resgate do conjunto dessas estantes dá depressão. Pôr tudo no chão — livros, revistas, jornais, cartazes, emeroteca, cartas, papéis avulsos — demanda a inclusão de marceneiro e pintor experientes, quando não também um eletricista para (re)ligar computador, impressora, telefone, som. televisão e garantir o funcionamento original do equipamento.

É coisa de extrema complexidade misturar livros de uma vida inteira até então separados por gêneros, autores, assuntos. É como desmanchar uma babel para fazer outra. Para o pintor da limpeza do bolor, que só quer ver a parede limpa, não faz qualquer diferença misturar séculos de Antiguidade Clássica com a vanguarda da tecnologia, Machado de Assis com Carlos Drummond de Andrade, Julio Cortázar com Libério Neves, a Bíblia com dicionários, suplementos literários com textos impressos inéditos. E haja espaço para acondicionar o desmanche que leva pouco tempo para ser feito. Em compensação, quando for feita a remontagem da biblioteca muitos dias serão gastos até que tudo esteja em seu devido lugar.

Talvez a única conveniência dessa façanha doméstica é aproveitar a ocasião para fazer uma rigorosa seleção de tudo e questionar até que ponto é viável guardar livros e similares. O ideal — eis uma conclusão lógica — é doar tudo que já foi lido e assimilado para entidades que absorvem a demanda de leitores, sobretudo, vorazes e os que não têm a oportunidade de ter acesso a obras e material de qualidade.

O desapego pode até engrandecer o doador, mormente se este, (como é meu caso), recebe em média quatro a cinco livros por mês de editoras e autores. É preciso se perguntar até quanto é imprescindível estocar livros em casa, quando se faz necessário vê-los circulando em bibliotecas, aumentando seu alcance.

Minha biblioteca, além de heterogênea como sói ser toda biblioteca, contém enciclopédias e referências virtuais, reunindo um bom acervo livresco impresso e em rede social (marcioalmeidas@hotmail.com/ Germina — Revista de Literatura & Arte/ Márcio Almeida Poesia Iberoamericana), tudo, é claro, à disposição dos leitores. Seu conteúdo presta-se ao prazer e à informação desde jovens estudantes a idosos, com uma variedade temática e autoral.

Esta crônica objetiva, por isso, levar os leitores a "sofrer" comigo esse momento épico de ter uma biblioteca exposta no chão tal como reformar uma casa que se enche de vida nova cada vez que um livro é acrescentado à estante. Além disso ocorre que é comum pessoas doarem a mim suas bibliotecas inteiras cujos livros, depois de triados, serem repassados a entidades públicas a fim de um aproveitamento integral por empréstimo em função da leitura por prazer e busca de informação para pesquisa.

Contudo — ossos do ofício — às vezes é preciso vivenciar esse caos bibliófilo. Essa experiência é de difícil absorção porque tudo vem à tona, inclusive aqueles livros que andavam sumidos, outros que vêm à lembrança terem sido objeto de empréstimo, muitos dos quais que nunca mais serão devolvidos. Uma boa biblioteca leva no mínimo cinquenta anos para ser formada, mas basta meia hora para ser derruída. (Re)colocar no lugar tantos livros e afins chega a ser uma aventura. A aventura de soerguer a história da cultura, portanto, a vida humana.

 

 

 

 

dezembro, 2020

 

 

 

CORRESPONDÊNCIA PARA ESTA SEÇÃO

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