©j. barreto
 

 

 

 
 

 

 

 

Nana neném



Nana neném, que a cuca vem pegar. Papai foi pra roça, mamãe foi trabalhar.


Ela termina de cantar e coloca a menina sentada no sofá, liga o aparelho de televisão para entreter a bebê. Vai até a cozinha preparar a comida da filha, que está há algumas horas sem comer. Mesmo sem reclamar chorando por comida, a mãe entende que já é o horário da alimentação.


Ela põe água no papeiro e coloca o leite no liquidificador. Depois mistura com o líquido morno e liga o aparelho por alguns segundos. O suficiente para o mingau ficar pronto. Coloca na mamadeira e leva até a sala. A menina olha fixamente para a TV. A mãe então leva até a boca da garotinha, que rejeita. Outras duas tentativas e nada. Entoa novamente a canção infantil. Nana neném, que a cuca vem pegar, papai foi pra roça, mamãe foi trabalhar. Mesmo assim, a menina não cede.


— Então durma, minha linda, mamãe vai lhe contar uma historinha.


Depois de mais algumas balançadas e de contar a história que a criança tanto gosta, a menina, enfim, dorme. A bebê é colocada no berço e logo em seguida a mulher liga o aparelho com algumas canções de ninar e o pequeno abajur com vários animaizinhos iluminam as paredes do quarto. Ela se retira e vai até a varanda fumar. Aprecia a noite chegando. Acha bonito, mesmo com o caos que o Recife se transformou. Sobretudo ali, na Praça Chora Menino, onde o homem chega tocando o seu sax.


Na parede da sala, fotos da família feliz. Várias imagens de momentos marcantes. Uma, maior, se destaca. Ela abraçada ao marido e a criança no meio. A única filha até o momento.


A mulher volta até o quarto para ver se a filha continua dormindo. Ela observa que sim. Um sono sem culpa, pesadelos ou sonhos.


A menina está lá, exibe o mesmo sorriso estático, de olhos azuis sem piscar.


Sono de plástico.


Boneca.


Feita à imagem e perfeição da filha morta.



[Do livro O Espetáculo da Ausência. Patuá, 2020]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Ney Anderson (Recife/PE, 1984) é jornalista, escritor e crítico literário. Tem contos publicados em diversas antologias. Entre elas, Contos de Oficina (Editora Bagaço, 2007-2008-2009-2010), Livrinho de Papel Finíssimo (2011) e Carrero com 70 (Cepe Editora, 2018). Participou ainda da antologia Os novos escritores pernambucanos do século XXI (Diário Oficial de Pernambuco, 2008). Desde 2011 mantém o site Angústia Criadora, especializado em resenhas literárias. Já colaborou com artigos críticos para os jornais O Estado de S. Paulo e Estado de Minas. É também colunista de literatura da rádio CBN Recife. O Espetáculo da Ausência é o seu primeiro livro.