©michael krause
 

 

 

 
 

 

 

 

Dos teus braços

 

 

A vida das pessoas é quase sempre menos interessante do que imagino. Obedecendo ao clichê, invento um passado, um porquê mirabolante de estarem ali, diante de mim, carregando suas sacolas e gestos. Não é o caso da mulher de azul, à minha frente no café. Dela eu sei.

É a terceira semana consecutiva que a vejo aqui, mas em horários diferentes. Nas duas primeiras, sentou-se na mesa colada à parede. Hoje aquela mesa estava ocupada por um casal de velhos, e a mulher escolheu essa, perto da saída. Daqui posso enxergá-la bem.

Mesmo se eu usasse toda a criatividade para inventar o que fosse a respeito de sua vida, dificilmente chegaria perto da realidade.

Disfarço, não quero que ela me veja reparando na sacola de pano abarrotada pendurada na cadeira, um tecido de renda preta saindo por cima como se tentando escapar.

Ou talvez quem disfarce seja ela.

O café chega, ela o recebe à sua frente sem olhar para o garçom. Do pescoço pende uma corrente delicada. Isso é ouro. Na ponta do V desenhado em seu colo, um pingente pequeno — não consigo distinguir exatamente o que é, não posso forçar muito a vista. Parece um alaúde. Ela segura o pingente com os dedos da mão esquerda e, com a direita, a asa da xícara. Depois de sorver um pequeno gole — percebo pela contração do seu rosto que estava muito quente —, olha em volta, atenta a cada um mas sem se deter em ninguém. Nem em mim.

Não aparenta nervosismo, talvez cansaço. Sim. Um cansaço antigo, pesado em cada movimento, guardado detrás de seu nítido esforço de juventude nos cabelos pintados de preto, na ausência de rugas. Mas é como se as rugas tivessem deixado marcas invisíveis. Diferente da cicatriz na têmpora esquerda — noto quando ela vira o rosto para procurar algo na bolsa, também pendurada na cadeira. Eu vi numa série sobre investigações criminais: uma cicatriz rosada como a dela é jovem, talvez adolescente. Nunca velha, não ainda. Só quando esbranquiçar.

Ela dá mais um gole. No pulso, outra cicatriz, da mesma cor. Alguém poderia dizer que se trata de uma queimadura comum de fogão. Mas nesse formato, eu diria oval, tirando a assimetria que a faz lembrar um cavalo-marinho? Difícil. O fogão deixa marcas menores; o forno, horizontais. Ela olha o celular para ver se há mensagens, para ver a hora. Eu sei, porém, que não tem pressa. E quem mandaria mensagens?

Tinha uma vida comum, até um ano atrás. Já faz um ano? O tempo passa rápido. Mas acho que menos. Seis meses, talvez. Divorciada, dois filhos quase adultos. Já adultos. Trabalhava, a contagem regressiva para a aposentadoria, imaginando o que fazer da calmaria que viria depois. Não sei se, nos dias corriqueiros, ela já pensava no que aconteceria, ou se até planejava, ou se foi a partir de um impulso, como ouvi dizer. O fato é que uma noite, depois de servir a janta para os filhos (um deles reclamou que o molho da carne estava muito salgado ou que o bife tinha ficado duro), depois que cada um se fechou em seu quarto, sabe-se lá se já estavam dormindo, ela saiu. Eles não perceberam; estranharam, no dia seguinte, que a mesa do café não estivesse posta. O mais velho foi até o quarto dela e viu a cama ainda feita. Antes que tivesse tempo de comentar com o mais novo, trancado no banheiro, o som da porta da sala avisou da chegada da mãe. O mais velho ia perguntar onde ela estava, onde tinha passado a noite, mas alguma coisa na presença dela, talvez o suor, o rosto enérgico, a felicidade que irradiava, alguma coisa impediu que ele abrisse a boca. A mãe esperou que o mais novo saísse do banheiro e, sem dizer nada, entrou no banho. Saiu, se vestiu para o trabalho — havia sido professora na juventude, mas depois de um afastamento por saúde, dizem que por depressão, passou a ocupar cargos administrativos nas escolas da prefeitura —, acendeu o fogão, colocou para esquentar o leite (no micro-ondas faz mal, leu uma vez), pôs duas fatias de pão na torradeira, esperou pularem, pôs outras duas e correu para desligar o fogo antes de o leite entornar. O mais novo nem percebeu que a mãe não dormiu em casa, e o mais velho desistiu de perguntar ou fazer qualquer comentário.

Foi só depois de vários dias quase seguidos de ausência — e aí o mais novo também já tinha se dado conta de que a mãe passava a noite fora — que eles decidiram perguntar para ela onde ia. Na mesa, o mais velho, diante de seu café com leite, após uma mordida no pão com requeijão, fazendo um gesto com as sobrancelhas, alçando-as para cima ao mesmo tempo que o queixo apontava para a frente, ordenava em silêncio que o mais novo abrisse a boca para perguntar à mãe o que haviam combinado.

Não é da conta de vocês, ela respondeu, levantando da mesa com o prato na mão, o resto do pão largado entre os farelos. Os filhos se entreolharam buscando um no outro não um refúgio, mas um reconhecimento qualquer — nenhum dos dois tinha em seus repertórios de vida qualquer recurso para entender aquela fala da mãe, a mãezinha deles, só deles, desde sempre. O mais velho, sentindo a sobrecarga da idade diante da cara interrogativa do irmão, abriu os braços, as mãos espalmadas para os lados: não tenho a menor ideia do que seja isso ou do que fazer.

O fato é que por muito tempo eles ficaram sem saber. Meses. Tentando fingir que tudo estava normal, que o fato de a mãe passar a noite fora (nem todas as noites, mas quase todas) não era nada, se o café da manhã e o jantar continuavam sendo postos. O mais novo teve a ideia de perguntar para o pai se ele sabia de alguma coisa, então numa quarta, o dia em que ele os buscava na escola (embora eles já andassem de ônibus), o mais velho no banco do passageiro, ao lado do pai, o mais novo no de trás se enfiou no buraco entre os dois assentos, puxou o ar e perguntou: pai, você sabe onde a mamãe tem passado as noites?

O pai, casado de novo há anos com uma mulher que conhecia desde quando ainda era casado pela primeira vez, quase bateu o carro na tentativa de olhar para a cara dos filhos, para as duas ao mesmo tempo. Olhou de novo para a frente a tempo de desviar de uma kombi que buzinava e parou no farol amarelo. A mãe de vocês não está dormindo em casa?

Esquece, pai, o mais novo disse, recostando-se de novo no banco de trás e já puxando o celular do bolso, dando por encerrado o assunto. Ainda tirou os olhos da tela para escutar o pai dizer que a mãe devia estar namorando, ainda bem, se ela continuar arcando com as suas obrigações de mãe, qual era o problema, eles deviam entender, a mãe deles era gente, afinal. O mais velho pensou que o pai devia achar os filhos uns idiotas para não terem feito eles mesmos aquela hipótese, mas o pai não via a cara da mãe toda manhã quando chegava em casa, se visse também desconfiaria de que não era só um namorado.

Enfim, o tempo foi passando e os dois filhos não tinham muito a fazer a não ser aceitar aquele mistério, afinal de contas, como o pai havia dito, a mãe não deixava faltar nada, apesar de aparentar um pouco de cansaço às tardes.

Uma manhã de terça, a mãe não voltou. Já estava na hora de os meninos saírem e a mesa da cozinha continuava do mesmo jeito que havia passado a noite, sem toalha, o vidro aparente, liso e vazio. Os filhos discutiram se o melhor era ir para a escola, esperar a mãe ou avisar a polícia. O mais novo ligou para o pai, que disse: nada de faltar à aula, não deve ser nada demais. Os meninos, com fome, pegaram um ônibus até a escola (um único ônibus, que os deixava a um quarteirão).

Nesse mesmo dia, o Marco, da sala do mais velho, espalhou para todos os meninos que tinha ido num puteiro. Era como uma balada, contou, mas com frequentadores só homens, e as mulheres que havia vestiam quase nada e dançavam no palco e se insinuavam e levavam os caras lá pra dentro ou ficavam se esfregando ali mesmo, na frente de todo mundo. E as mulheres lá são como?, o mais velho perguntou. Como assim, Victor? São putas, o Marco disse. Tem de todo tipo: novinhas, gostosas, magrelas, gordas, velhas e até acabadas. Putas.

Será que minha mãe já chegou em casa?, Victor pensou, preocupado.

Algumas horas depois, na terceira aula, três salas mais para a frente, o mais novo, enquanto fazia os exercícios de inglês, escutou a Carina contando para a Elaine que a tia dela tinha levado a namorada para o jantar de família. Meu pai e meu avô ficaram bravos, ela disse, até saíram da mesa, mas eu não entendi o motivo, a namorada era simpática e bonita, todo mundo achou. Samuel virou para trás e perguntou para a Carina que idade tem a tia dela. Não sei, acho que uns 45, ela respondeu.

Semana que vem é aniversário da minha mãe, Samuel pensou, preocupado se ela já havia chegado em casa.

Victor e Samuel voltaram da escola em silêncio, lado a lado no ônibus. Em casa, foram cada um para seu quarto. Portas fechadas. A mãe não estava.

No fim da tarde, o telefone tocou. Samuel correu para atender, Victor veio em seguida. Era engano, Samuel disse, mirando perplexo as lágrimas caírem dos olhos do irmão, sem perceber que dos seus elas caíam também.

 

Sem saber o que fazer, se abraçaram, ambos chorando, perdidos, sabe-se lá por quanto tempo, até escutarem o estalar da porta. Samuel seguido de Victor correram para perto da mãe, os dois ávidos dela, como se a fossem ambos abraçar ao mesmo tempo, no mesmo gesto de instantes atrás. Mãe, porra, que cacete você está fazendo? Quem você acha que é pra fazer isso com a gente? Mas eu não fiz nada com vocês, ela disse antes de receber no peito não um abraço, mas um tranco do tórax de Victor, e na cara o punho fechado de Samuel e depois no ombro a mão espalmada do Victor e depois no estômago o pé direito de Victor e depois no olho um cuspe não sabe de quem seguido de outro soco que já não viu de quem era, ainda conseguiu se virar de bruços — caiu de costas depois do terceiro empurrão — e se arrastar até o banheiro, deixando para trás os filhos raivosos, desvencilhando-se de Victor, que agarrava seu pé esquerdo, já descalço, e conseguindo, com o peso do corpo inteiro sobre a porta, passar a chave e se trancar.

Ofegante, deixando-se cair com as costas apoiadas na porta do banheiro, sem notar o sangue pingando nos ladrilhos brancos, fechou os olhos, apoiou a cabeça para trás e se imaginou, com que forças não se sabe, feliz, mergulhando na água, ou na cama de Antônio, onde havia dormido tão bem a última noite, tanto que perdeu a hora; ou respingando no mergulho do sangue na água o mesmo suor do palco, sem calcinha, as tetas de fora, dançando e rebolando com os mesmos olhos fechados, a cinta-liga justa nas coxas, segurando a meia três-quartos e sua vida; ou lambendo os beiços da água doce do rio depois de chupar por um longo tempo a xoxota da Gorete.

Suspirou. Se não sangrasse, se não doesse tanto, a próxima noite seria diferente.

 

Ela pede uma garrafa d'água e faz sinal para o garçom fechar a conta, toma um último gole de café já frio, coloca o celular na bolsa, pega a sacola dependurada na cadeira e vai embora. Abre um guarda-chuva: esqueci de dizer, há mais de meia hora começou a respingar.

Eu a sigo com os olhos até que dobre a esquina.

 

 

 

 

 

 

Rachaduras

 

 

Acordou e ele não estava ao lado. Pulou da cama. Tranquilizou-se ao escutar o barulho da louça sendo colocada para o café da manhã.

Bom dia, disse, tentando um abraço. Ele a beijou na testa.

Sentaram-se. O cheiro de café dava à manhã de sábado o tom de um dia comum, só um dia entre outros. Ontem era ontem. Nenhum estilhaço como prova.

Os dois haviam sonhado sonhos impuros e ficaram quietos quanto a isso (sem estilhaços). O sol indo em direção ao alto do céu.

A que horas você sai?

Mordida no pão, queijo derretido na cara e em cima da mesa, gole de café.

Agora.

Ela piscou os olhos e deixou na mesa a sua xícara. Vou ficar em casa o dia todo. Arrumar umas coisas.

Eu sei. Levantando-se, parou ao lado dela, repetiu o beijo, foi em direção ao banheiro. Da porta gritou se ela se lembrava do vidraceiro que viria hoje. Não esperou a resposta e se enfiou nos ecos da batida da porta.

Batida da porta que não se repetiu na hora de ele sair, porque ela estava ali, para dar tchau no hall do elevador. Procurou os olhos dele, que se desviaram de qualquer olhar mais demorado. Beijo rápido na boca, sem nenhum pedaço de corpo que acompanhasse.

Um suspiro ao se voltar para dentro da casa vazia. Movimentou-se pelos seus afazeres: cama, louça, os livros que estavam desorganizados, as tralhas todas há semanas por arrumar.

Tarde. O vidraceiro veio. Ligou para dizer que tinha dado tudo certo, ele não atendeu.

Tinha algum medo, um medo íntimo. Não ousava se deter nele.

Um pouco depois das seis, no horário de sempre, ele chegou.

 

 

 

 

 

 

Quem sorri

 

 

Era impossível não reparar nela. Vestia simples, como quem não soubesse o que o dia lhe reservava, ou não se importasse com a roupa na hora das alegrias verdadeiras: calça jeans e uma blusa azul de manga comprida (fazia frio aquela noite no Rio de Janeiro), nem justa nem larga, compondo com o cabelo curto e cheio, mais para cima que para os lados, a imagem de uma pessoa, de uns cinquenta, sessenta anos?, por quem os olhos poderiam passar sem se deter.

Se ela não dançasse.

Tocava um samba pequeno e afinado, a roda em volta da mesa e outra roda em torno da roda, círculos concêntricos a partir da música, ou antes, a partir do centro vazio de onde todo som se inicia. Os homens fechavam, por vezes, os olhos: os instantes de não aguentar a minúscula força — um relance — que suas próprias mãos talhavam em melodia. As mulheres e homens, atrás, reverberavam nos passos, nos braços abertos, a música recebida da roda em frente.

Sorriam todos. Mas ela, ela dançava mais atrás ainda, quase longe, quase alheia, e por isso mais dentro que cada um: de tão fora, era capaz de estar no oco, no nada em torno do qual uma roda pode surgir, o vazio que ecoa no interior de cada instrumento e do pulmão da voz. Uma cerveja na mão, duas, várias, mas desde a primeira exagerando os passos, o rebolado, o sorriso, numa alegria tão imensa que amparava o exagero e o fazia medida, a medida de cada um ali. Faltava um dente no sorriso que ela sorria, os olhos um pouco cerrados pelo ligeiro inclinado da cabeça para trás, desafiando o ar, desafiando o oco — o vazio do dente que faltava em sua boca —, e rodopiava em torno de si mesma, e movia o corpo de frente para nós, de frente para mim, que a olhava do outro lado da roda, hipnotizada diante da gratuidade bêbada daquela alegria.

Ela se aproximou — sempre dançando — em algum momento, que achei boa oportunidade para tentar qualquer interação, motivada, talvez, por esperança de contágio: quem poderia não querer sorver daquela alegria. Mas não: seus olhos, ainda semicerrados pela cabeça empinada, me atravessaram como se eu fosse o poste da escadaria do terminal de Madureira ali atrás. Tentei de novo, o sorriso maior, dançando ao mesmo ritmo que o dela, e nada. Ela sorria ainda, para si e mais ninguém; bebia mais cerveja, e seguia com o olhar vazio de quem vê tudo mas não vai se lembrar de nada. E dançava, sempre, os braços abertos para o mundo em Madureira, a calça jeans e a blusa azul vivas como se também sorrissem, como se cada coisa de cada lugar, a começar dali, daquela roda acontecida na frente do terminal de ônibus, pudesse esgarçar os lábios e mostrar os dentes (um faltando), e o ritmo, e o som.

Mas ela não vai se lembrar de nada, constatei de novo, quase decepcionada, como se a falta de memória fosse algum tipo de desperdício. Os instantes. Aqueles olhos vazios que dançavam.

Eu vou.

 

 

[Do livro Rachaduras. Quelônio, 2019]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Natalia Timerman é médica psiquiatra pela Unifesp, mestra em psicologia e doutoranda em literatura pela USP. É autora de Desterros: histórias de um hospital-prisão (Elefante, 2017), acerca de seu trabalho no Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário, e da coletânea de contos Rachaduras (Quelônio, 2019). Fez a pós-graduação em Formação de Escritores do Instituto Vera Cruz.