©leonardo valente

 
 
 
 
 
 
 

Veneza



A parede malhada feito um gato

(Ou vaca)

O espelho que mostra uma velha carcomida

Pelo tempo, pelas palavras não ditas

Trancadas na garganta de um mundo WhatsApp


Manda figurinha

Escolhe

Essa não


Como no tempo das cavernas

Desenha

Nem desenha. Escolhe um desenho pra dizer


O lambari pula no coqueiro

— Pula? Lambari não é peixe?

— É. Acho que é.


Não importa. Nada importa no tempo das máscaras.







*



Escolha as flores que nascem na calçada quando ninguém está olhando. E brotam alegres

Escolha o vestido rosa e o sapato azul

(não te importes se não combina)


Escolha sempre o amor

E as palavras bonitas

Escolha a risada da mãe

E um encontro com a amiga


Escolha o fim de tarde na Urca,

um brinde em Santa Teresa,

as folhas no chão e uma criança pulando pra não pisar em folha nenhuma


Escolha.

As coisas e as palavras bonitas devem ser escolhidas

todos os dias







Casa de madeira



As tábuas com o tempo vão secando. A madeira fica seca e as tábuas diminuem de tamanho.

Daí você tem que pregar nelas as matajuntas.


Você sabe o que são matajuntas? São aquelas ripinhas mais estreitas que as tábuas.

Você tem que pregar as matajuntas pra juntar uma tábua na outra e não entrar água quando chove. Ou venta.


O bom é não fazer casa com madeira verde, nem madeira recém cortada.

É bom deixar um tempo.

Deixar as tábuas e as matajuntas secarem e só depois pregar.


Às vezes me lembro dessas coisas que eu sei,

mas que não servem de nada.







Os meus olhos



Não eram os olhos dos meus amigos da escola

Meus olhos diferem do meu rosto


Meus olhos não parecem com os olhos que deviam parecer

Eu não pareço com o que devia parecer


— Você não parece do Acre.

— Você não parece uma mulher de Rondônia.

— Você carioca.

— Você não parece com seus olhos. Seus olhos não parecem seus.


E talvez meus olhos não sejam deste corpo. Branco. Magro. Aceitável.


Talvez os meus olhos sejam o meu não aceite. Meu desconforto. Minha solidão. Pois eu não pareço.


Não.







O estelionatário



Era um poeminha feio, ruim

Fraquíssimo

Daqueles que a gente deleta antes de publicar


Mas o bicho era atrevido!

Gritou lá da cozinha

— Pq tu não trocas teu nome por um poeta conhecido? Daqueles que compram, no natal, os livros?


E assim, papo reto, foi feito

E eis que um like

Três likes

Vinteeee ooooito likes


Lindo!

Belíssimo!

Coisa de gênio!


Num par de horas tinha até gente comentando que conhecia bem essa obra prima do Manoel

E outro que se lembrou de um livro comprado em Ipanema numa quarta-feira de noite


E o poema feio, fraquíssimo.

gargalhando

Enquanto apontava pra beleza de seus bíceps







*



e todos os poemas

que vão

se perdendo


nessa busca exagerada

(de não sei o quê)

que nunca chega


e quando chega

Ana começa a pintar de novo

(quando os quadros são os mesmos, pinta-se a parede)







*



O sol lá fora parece frio

Sem gente

Sem riso


Limpa o chão

Recebe as compras

Lava, esfrega, enxuga

Arranca a rua das coisas


A rua gruda

Entra pelas ideias

Há riso esperando lá fora

[Amanhã. Há de ter amanhã]



dezembro, 2020



Walquíria Raizer. Escreve poemas, crônicas e histórias para crianças. Publicou os livros O segundo ponto das reticências (EdUFAC, 2007), A história de Chiquinho (com ilustrações de Ziraldo, 2009) e integra a coletânea Amar, verbo atemporal, organizado por Celina Portocarrero (Rocco, 2012). Trabalha na área cultural desde sempre. É mestranda em Memória e Acervos da Fundação Casa de Rui Barbosa - PPGMA-FCRB. Especialista em Gestão e Produção Cultural (MBA) pela FGV Rio - Management/Rio. Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Acre. Já morou no Acre, em Rondônia e no Paraná. Atualmente vive no Rio de Janeiro.

No Instagram: @walquiriaraizer.


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