©nádia maria
 
 
 
 
 
 
 

§

 

 

atravessar cada corpo

tocar o espesso do osso

que é nosso e do outro

estar onde se padece

com fúria de paciência

estar onde se lavra uma horta

onde se lava uma roupa

onde se reza e se cura uma dor

estar onde se nasce e onde se fenece

e ser nesse morar e estar nesse morrer

 

 

 

 

 

 

§

 

 

nasci de uma aranha

que me fisgou por dentro

com seu fio de visgo

que defende a greta

aberta na madeira

 

o brilho felpudo

enlaçou meu pulso

 

e aprendi ali

que toda beleza

tem custo

 

 

 

 

 

 

§

 

 

toda ausência

é um cão

que gane

sem despedaçar

o silêncio

 

 

 

 

 

 

§

 

 

no beiral da casa

faziam ninhos as andorinhas

dali partiam rasantes

num diz-que-diz-que de bicos

a casa parece que levitava

de pios e ninhos

em atropelo

 

tem dias que achava

que o telhado ia levantar voo

 

 

 

 

 

 

§

 

 

disse hoje vou mais cedo

e foi-se bem antes do normal

varou a cidade pelo meio

em busca de algum punhal

que a matasse, ma sem dor

pensou, chutando seus passos

que nem isso é favor

 

 

 

 

 

 

§

 

 

paredes se fecham

a noite abraça os postes

em silêncio sombras saem

de fendas da mobília

sentam-se no ladrilho

e narram vidas

que não tiveram

 

 

 

 

 

 

§

 

 

pertenço às ruas frias

de vento e geada

em que algo de mim

se incorporou aos portões

e a esses cães famintos

que rosnam para os passantes

a esses tetos que pungem o céu

com suas antenas parabólicas

mandando mensagens a Deus

 

 

 

 

 

 

§

 

 

memória é medo

que se entreva

entre as teias

do corpo

memória é osso

sem carne

que cobrimos

da melhor forma

possível

para que não

sangre

 

 

 

 

 

 

§

 

 

quando o pilão é dentro

não há grão que o alimente

nem moenda que lhe baste

sova ossos cartilagens

tudo o que soca é desbaste

não há nervo que resista

fibra que não se gaste

 

 

 

 

 

 

§

 

 

estava na cozinha

escolhendo feijão

com a alma solta

no vento

ele veio

me rasgou

por dentro

e nunca mais

tive conserto

 

 

 

 

 

 

§

 

 

saber a morte nem é lento

disse a vizinha de leito

 

e mostrou

numa semana curta

de dor aguda

em cada fração de junta

como se aprende

rápido a lição

 

 

 

 

 

 

§

 

 

entrou em casa

chutando a sombra

e se fechou no banheiro

encostou o rosto no frio

ferido do espelho

e foi comendo a noite

sem fazer ruído

 

 

 

 

 

 

§

 

 

irmão de silêncio sem fundo

irmão da palavra retida

como um castigo

irmão do fio cortado de uma linha

sem medir a extensão

toda palavra engolida

morre dentro do pulmão

 

 

 

 

 

 

§

 

 

esperar na porta

que o vento passe

e traga nele sua voz

já que os trilhos do trem

foram arrancados

as ruas não me levam

o ar parado se perde

como água que adoece

e o telefone mudo

espera que você

entre nele com

seu chinelo

 

 

 

 

 

 

§

 

 

um dia o pai lhe deu um carrossel

o fino papel que se abria

em suas mãos calosas

desvendou o que nunca vira

cavalinhos que se moviam

para baixo e para cima

enquanto os olhos

não davam conta

de tanta minúcia

a cor da folha da caixa

a curva do polegar na espora

de cada animalzinho em seu brilho

o pai passou a tarde inteira

agachado no chão

vendo cavalgar no vento

a boiada em miniatura

 

 

 

 

 

 

§

 

 

mastigar dois dias o bocado

não faz com que desça rápido

pelo gargalo da boca

mas de certo

com a saliva o bolo

se torna lama

em que a língua

afunda

a fala

emana

 

 

 

 

 

 

§

 

 

há tardes que não se despedem

apenas encostam a porta

nessas cabem os rastros

de todo bicho que ronda

nessas tem lugar um olho sempre se indo

sem nunca poder chorar

nessas há um rumor de chuva

se desmanchando na terra em torrões

que desabam em desfiladeiro

levando tudo consigo

 

 

[Poemas do livro Minha língua roça o mundo. São Paulo, Patuá, 2018]

 

 

 

março, 2020

 

 

Vera Lúcia de Oliveira Maccherani é poeta, ensaísta e professora de Literaturas Portuguesa e Brasileira na Università degli Studi di Perugia. Recebeu diversos prêmios pela sua produção literária, entre os quais o Prêmio Sandro Penna (Perugia, 1988), o Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras (Rio de Janeiro, 2005), o Prêmio Internacional de Poesia Pasolini (Roma, 2006), o Prêmio Literatura para Todos (Brasília, 2006), e o Prêmio Internacional de Poesia Alinari (Florença, 2009). Escreve em português e em italiano e tem poemas publicados em vários países. Entre os livros: Geografia d'ombra, 1989 (poesia); La guarigione, 2000 (poesia); Storia nella storia: le parabole di Guimarães Rosa, 2005 (ensaio); Poesia, mito e história no Modernismo brasileiro, 2015 (ensaio); A chuva nos ruídos, 2004 (antologia poética); Verrà l'anno, 2005 (poesia); A poesia é um estado de transe, 2010 (poesia); La carne quando è sola, 2011 (poesia), Vida de boneca (infantil), 2013; O músculo amargo do mundo, 2014 (poesia); Minha língua roça o mundo, 2018 (poesia); Ero in um caldo paese, 2019 (poesia). Mais: www.veraluciadeoliveira.it.

 

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