©kay sage

 
 
 
 
 
 
 

Criação



dentro do verbo

a luz represada


reaprender o verbo

de concreto


fiat lux

o verbo velho de deus


é na escuridão

que brilham vagalumes







Máquina lírica

texto 1



delicadamente

o verbo dobrado ao meio

e um som indecifrágil

coagula dois limites


o tempo onde repousam

memórias verdes

expondo a nervura da planta

derramada na areia


o verbo em cada parte

onde um sentido perturba

as águas que refletem elefantes

criando ondas de sal


as mãos tremem devagar

é impossível segurar-se no corpo

é a noite nos ossos que desperta

os lampiões antigos


é disso que o oráculo 

reitera dentro do amor

é uma ilha sensível

o amor sendo amor


e não dirá nada que obscureça

a tarde de grandes relógios parados

seguirão o ritmo o aspecto das aves

no espelho que reflete o espaço


são apenas dois olhos

em retrospectiva

imensas ilhas na geografia do rosto

os dentes alvos como peixes


líquidos e alvos peixes

na dimensão secreta das ondas

peixes inomináveis e belos

como o sorriso no retrato


só o verbo novamente

nas densas horas onde as palavras

quebradas diante de Deus

brilham como sóis dentro de pálpebras.







O deus afogado



No mais alto de si mesmo

o abismo de muitos lilases

só o que resta são as cinzas

no altar de pedra


Batendo contra o vento

segue o pássaro devorando o tempo


No mais baixo de si mesmo

a água mais pura

o desejo por uma metafísica

não encontrada


e no laço de frágil bronze

das mãos em sangue tombadas

na água onde nadam serpentes

as retinas guardam flores de cal


Na hora mais lenta o mais sutil

e agreste perfume

nos sulcos onde os pés

vão deixando sementes


Na mais alta torre

as chamas que crescem dos olhos

o infante perdido entre palavras

diante do monstro de sal


Na casa mais distante

o lastro esquecido na sombra do cata-vento

onde delicadamente é tecida

a nervura do sol


Na onda mais secreta

repousa ainda o oráculo

suas densas asas batendo contra o vento

só um verbo teimando em ser carne


Onde repousa o tridente

construindo entre as ilhas um diálogo

repousa numa pira de naufrágios

o deus afogado.







Ábaco



escrever delicadamente sobre um ponto

na memória

escrever e saber que escrever 

é escrever sobre o passado


e se a distância não couber na frase

nem o verbo ser mais que o ser

ou a metáfora ser insuficiente

diante do espanto do dia


irei sem dúvida acordar sozinho

e nem perceber que já faz anos;

tomar o mesmo café diante da janela

e nem perceber que não tem açúcar


dias virão novamente e tardes também

e não haverá necessidade de segredos

só o espanto diante do dia

bastará


mas ainda soará em meus ouvidos

palavras indecifráveis

e consultarei velhos dicionários

e não encontrarei nada


haverá canções que ouvirei no rádio

porque meu mundo será analógico

deixarei toda essa tecnologia alienígena 

e voltarei a escrever à mão


escrever é escrever delicadamente

sobre o que não está mais,

é um jeito de redecifrar

aquilo que tão rápido passou.







Caderno azul

texto 1



não saberei onde

nem o nome ou

a cor que veste

só a tormenta 


só a tormenta

que traz na carne

que treme e faminta

devora o tempo

só a sombra


só a sombra

que projeta num espelho

o vitral incompleto

de água termal

nada adianta


nem ficar diante do abismo

o sal de um vulcão

nem o detalhe

na parede da sala

é o que serve


o que é astro ou bronze

lua luna lune

só um cansaço na voz

só e inquiento dentro dum vale

nada é


e dirá 

com flores em todo o corpo:

da imensa lonjura

nada permanecerá.







Exercícios

parte 3



uma mensagem fluindo delicadamente

de longe o mais áspero lilás

nascente. Vindo de alguma forma geométrica

é impossível pesar o pesar

só deixar que siga dentro de si

o que é vulto e sangue:


pérola de sol num cardume de peixes 

só o espaço como uma dobra da geografia

das andanças e das casas feridas pelo vento

e ferido os lábios em arame farpado

nas horas densas do oráculo


e o que traz em si o átomo partido

como um pequeno crucifixo sobre o peito

na face os ideogramas pintados

as longas águas dentro dos olhos

e dirão em grandes trombetas

as flores na textura de um haicai


e haverá um bálsamo nas mãos intocadas

em fuga a cavalo à moda de tempos idos

só uma ilha com um nome escrito

nada deterá o tempo em seu navio de madeira

suas longas velas cheias de memórias.







texto 37



e uma vez mais

te busco no ar da manhã

notas dentro de uma pedra

as horas íngremes numa terrível constelação







Acervo 5



e então quando estrelas caírem

quando aberto em rios salgados

os olhos tão cheios de silêncios

diante de barcos naufragados


e veremos na água esses quintais

e correremos num mundo às avessas

num igarapé peixes coloridos

cheios de luz e sem sinais


apenas o sono no detalhe do sonho

outra face no espelho vista de longe

e o dia diante do abismo sozinho

as palavras trancadas na voz


em nossas mãos uma chuva trançada

cada fio de cristal delicado

cada nome transcrito na pele

e de ideia a ideia uma escada


subindo e subindo na música

até a altura de onde não se volta

na mesma porta o mesmo rito

apenas o sol em seu abismo.







Acervo 1



Tenho os olhos feridos de tanto temer a noite,

e de tanto me agarrar a essas colunas de metal 

e água: esses desenhos de ar,

que tanto me apavoram,

tenho as mãos também feridas.


Trago como uma oferenda este cálice vazio

sem voz, trovões ou vagalumes;

E vou tateando os limites sutis da manhã

até que algo exploda delicadamente,

até que esta chuva que agora me impede os passos, que agora transborda os rios, 

que afoga minha impaciência,

torne em vinho toda minha estúpida delicadeza

diante de cristais imaginários.







Acervo 2



Essa chuva que me atravessa a pele,

e onde a sombra me envolve tactilmente 

e onde sinto na ideia o mesmo espaço sem memória;

o mesmo altar,

vejo velas acesas em círculos de ar:

apenas um gesto traz de volta a chuva.


Essa estranha de olhos claros como o dia que é puro sol,

estranho girassol tocando a fímbria da noite;

Essa página novamente revivida como um presente,

como uma ausência sentida. 


O que são essas aves em voo tatuadas na pele

que atingem dentro dos olhos o mormaço que chega?







A letra oculta



Esse interminável gesto

marinho e triste,

azul como um moinho

coberto de vento


Essa incessante légua

intransponível

aos pés às asas: só Deus

em sua carruagem


e sua fria lâmina: o verbo.

Numa correnteza 

o rio de muitas águas

como um alfabeto em disparada


e mais que um ideograma

ou um rito agora existe,

só o poema em forma de água

em sua ternura viva.







Sem título



A arte é uma navalha

que corta a carne


A arte é um problema

dentro do poema


A arte é um salto no escuro:

como um lago em olhos escuros


A arte traduz a metáfora

de que a vida não basta.



julho, 2020



Raimundo Soares é natural de Itapecuru-Mirim, interior do Maranhão. Poeta, graduado em Direito pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Parte de sua produção poética está no blogue Turista Exilado.


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