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Te encontrar numa praia

de areia muito branca e mar muito azul.

Pegar os teus dois olhinhos marrons

e colocá-los num vidrinho em cima

das pedras brancas da encosta.

Ficar ali a ver o mar

e a olhar os teus dois olhinhos

e a lembrar que nem tudo

o que está posto do mundo

é para se pegar com as mãos.





Estou aqui

olhando o mar

onde deixei teus olhos


cansei deles

de carregá-los comigo


então abri o vidrinho

e joguei o conteúdo fora

os teus dois olhinhos marrons

no mar


sempre gostei de olhos escuros

passam confiança

aguentam toda e qualquer luz


o que eu não queria mais

era carregá-los comigo

como se fossem amuletos


então pensei


vou hoje mesmo à praia

me livrar deles

dos teus olhinhos


andar mais leve

sem aqueles dois vigilantes


joguei sem ritual


não como se joga

cinzas ou flores

no mar


joguei como se joga

mesmo algo fora


apenas abri a tampa

virei o frasco

e eles caíram na água

direto para o fundo


fiquei surpresa

esperava sinceramente

que teus olhos boiassem


pelo formato

pensei que seriam duas boiazinhas

na beira da água


sim beira

porque nem me dei ao trabalho

de ir ao fundo


já estava mesmo cansada

daqueles olhos

sempre me vigiando


aquele olhar grande e contínuo

acompanhando cada gesto

feito ave de rapina obcecada


agora já foi

não consigo mais achá-los no mar


estão descansando

no fundo da areia 

antes de serem comidos

pelos peixes


não sei se peixes comem olhos


olhos viciados em seguir


eram irritantes

por isso joguei-os fora


o certo talvez fosse enterrá-los

já que eram parte de um corpo


como se enterra uma perna ou um braço

de alguém atingido por uma bomba


mas na pressa

e por estar perto da praia

achei mais fácil e prático

jogá-los mesmo ali

no mar


depois fiquei pensando


meu deus

e se uma criança na beira da água

acha os teus dois olhinhos

ainda inteiros

e coloca-os na boca

por parecerem comestíveis

balas ou algo assim

mastiga os teus olhos


isso eu não queria

pela criança que não tem culpa

de ter achado teus olhos no mar


talvez ela não coloque os olhos na boca

talvez tente encaixá-los na cara da boneca

caída na areia

dar ao brinquedo olhos de verdade


isso seria menos trágico

e até cômico


os teus dois olhos numa boneca


você que odiava as crianças

não queria ser incomodado

tendo que olhar para elas


quero olhar só para você

dizia


todos os dias esta declaração

do foco em mim

no teu amor


estes olhos avassaladores


confesso que foi nisso que pensei

quando os vi pela primeira vez


que olhos avassaladores

que olhos bonitos

parecem carinhosos

parecem bons


não acham

perguntava aos amigos

que desconversavam


não acham

os olhos de um homem bom


não acham

não acham

não acham


eu perguntava todas as vezes

na mesa do bar

na praia tomando sol

no trabalho


ninguém tinha coragem

ninguém queria se comprometer

com uma visão excludente


então interpretei o silêncio

como algo afirmativo


eram olhos bons


não sabia ainda

que acabariam no mar


depois de me perseguirem

anos a fio

grudados em mim

feito esperma


só depois que reparei


vi que as lichias

quando tiramos as cascas

parecem olhos


não como mais lichias

desde então


peguei trauma

como dizem


feito tomar muito de uma bebida

e nunca mais querer

colocar aquilo de novo na boca


a boca nem era o problema

você era calado

disso não posso reclamar


os olhos é que incomodavam

tão atentos dia e noite


sim durante a noite também

sempre que eu acordava

estavam lá teus olhos abertos


eu perguntava

você não dorme 


estava só te olhando


tão linda dormindo

meu desejo 

te olhar sempre

dizia


dia e noite

dia e noite

dia e noite


para saber tudo sobre você


como se tua vida fosse minha


isso me parece exagerado

eu dizia


na época eu ria

não sabia das consequências

de ser eu a ovelha preferida


é bom ter alguém cuidando

pensava


até o dia em que me levantei

da cama

joguei todos os meus remédios

no lixo

voltei para o quarto

para pegar os teus dois olhinhos

marrons


e colocá-los no vidrinho

você não se importou


pelo menos não disse nada

sempre tão calado


parecia estar ainda dormindo

já não acordava mais.



janeiro, 2021



Michaela v. Schmaedel (1976). Jornalista de cultura, tem se dedicado à poesia. Participou do Clipe (Curso Livre de Preparação do Escritor), na Casa das Rosas, e escreve resenhas para jornais e revistas sobre o assunto. Publicou Coração Cansado (Guaratinguetá: Penalux, 2020).


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