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ANIVERSÁRIO



os restos da festa parecem estranhas formas de vida.


mas se está só

ao esquadrinhar a geometria da sala


(acordar e morrer

é sempre muito só)


difícil saber a gênese da primeira mancha

no porcelanato do chão / na pele


da rua o biquíni no outdoor rasgado

os homens já acesos

em repartições, fliperamas, o pisar humano

do homem médio

que bate o ponto do estupro

e continua humano


em retorno ao desastre

gagueira nos músculos

quando abre a janela e

— uma manhã de asas enormes —

o som não sai ao dizer


bom dia, Século.







DIÁRIO OFICIAL



quando certa manhã Leviatã acordou

de um sono sem atrito

encontrou-se em sua cama box

com o mesmo rosto e barba apenas

um dia mais velhos.


entre um gole de café ou nacos de frutas

deglutidos pelo piloto

automático os olhos fulminaram

e-mails e a gravata só

voltou ao campo de visão ao

sentar no banco de trás do Audi.


impossível lembrar do nome

(horrendo híbrido de pai e mãe)

do novo ascensorista que

em silêncio aperta o décimo-segundo

e o cumprimenta

olhando o chão


Leviatã em sua sala

de reuniões e os bons presságios

do relatório da auditoria

e da parceria com os coreanos


como contraponto do

dia só o desconforto — penitência

para happy-hour — de

assinar a demissão (há um exército

lá fora para cada vaga, não

foi sem aviso) de

seu mais antigo

funcionário: Sísifo







COLETIVA



lamentamos profundamente

o ocorrido. uma sindicância foi

aberta. uma força-tarefa criada.

estamos prestando toda a

assistência às famílias. as doações

ocorreram estritamente dentro

da legalidade. não há motivo

para pânico. precisamos esperar

o laudo da perícia. a população

deve fazer a sua parte. a culpa foi

de uma disputa entre facções.

a situação está sob controle. este

é o nosso compromisso com o

futuro. confiamos nas instituições.

a empresa repudia veementemente

todo e qualquer ato de violência. a

confiança já voltou ao mercado.

as apurações serão rigorosas e os

culpados punidos. não renunciarei.

repito: não renunciarei. trata-se

de um caso isolado. o meu cliente

está de consciência tranquila e

provará na justiça a sua inocência.

tem que manter isso aí, viu? esta

vitória é de cada um de vocês







PANFLETO



começa, acho, com descobrir um furo no roteiro.

pode ser o calafrio depois de montar todo o

móvel (ou pelo menos assim parecia)

e flagrar sobre a mesa um

parafuso solitário.


ou, na volta da padaria (e nada, nada de ruim se

evoca de uma padaria), mirar os cadarços

soltos e ver ali serpentes anãs em cada

passada, no encalço.


em algum momento virá a crescente fobia

de pessoas excessivamente felizes


você está indo bem.


não é ainda a revolta. mas não é mais a paz







VAUDEVILLE



justamente por não fazer diferença, fique aqui.

o meu lado é um lugar tão danificado quanto

qualquer outro, que brinca, cai e se encarde

como qualquer outro lugar, é uma pantomina

que se queria desajuste e leveza, à moda

daquele poema em que as partes do corpo

de Teresa tinham idades diversas entre si.

devo me fantasiar de vendedor de seguros

em Praga, anos 00 de outro século. ou

quem sabe de funcionário em uma ilha de

escritório que mal e porcamente disfarce os

olhares desferidos (sniper relapso) ao relógio

na parede, a mantrificar o fim do turno. não

confunda isso com alegria. nem desespero.

uma piscina vazia com algumas folhas deitadas

nas pastilhas, uma roda-gigante em um parque

abandonado onde escorpiões agora agradecem

o silêncio da vizinhança: são aproximações

do que tentava dizer, os nossos desígnios de

nada, abraçados. por isso mesmo fique aqui.

o meu lado é um lugar em silêncio, enquanto

na cidade-cemitério do carnaval, à sombra da

figueira da praça centenária, cachorros de rua

fodem sob um céu sem bombas e sem milagre.




[Do livro Corvos contra a noite. 7Letras, 2020]




MICROFONIA



ela disse então até, e eu lia algo sem fixar

quando pensei ouvir até, mas a noite deste

lado da linha expandindo-se feito doença

e ela então, e eu não disse você é meu

Atacama minha balalaica minha se essa rua

fosse minha, nem que sua voz hoje chegava

lenta e azul como o quarto arrumado

visto sob a perspectiva de um brinquedo

e ela disse até, e depois de desligar pensei

em cinemas velhos e na luta feroz de

todos os silêncios chocando-se agora (ela

disse algo e desligou) quando (eu não disse

meu livro de areia minha devotchka minha

Cabíria) leio Benjamín Prado anunciar eu

sou minha última bala e mentalmente anoto

eu também e tentei adivinhar o desenho da

mão dela pousando o telefone mesmo

sem que isto atrasasse qualquer estrela em

seus irrevogáveis planos de implosão ou

sugasse do cosmo preguiçoso a resposta às

nossas ilusões de movimento, mas se toco

os fios soltos de algo que ela disse quando

disse até e estico sua voz até virar (minha

nouvelle vague meu) atalho para esta

estação: noite em conserva, fósforos na

chuva, e se coubesse então perguntar

do tempo, de quando é de novo a voz

por perto, se não agora, se de toda guerra

algum silêncio sempre escapa com vida,

que seja isso só, o tempo de uma chuva








CANÇÃO DE VAPOR



nunca morei em outra

cidade. outras

casas sim, o

refugo (de alegria e

doença) em

instalar o corpo, a

mesma rusga

entre o que se funde com

e o para sempre

alheio. não

sei da posse (nunca

morei em outra

cidade) de esquinas

inéditas sob os

tênis, ou,

içando o olhar

do pequeno caos de

linhas e letras,

quase ver a casa que

não veio, o cuspe

seco, uma família que

espremida

ainda acena do

mapa







A CÉU ABERTO



sua amiga perdeu o bebê anteontem

e hoje foi trabalhar,

lembrou na volta (dentro

das tripas do

ônibus, passiva ao atrito

compassado ferroando às costas)

até deitar o olhar sobre

o aterro, retrato

veloz na janela, mas não tanto

que não deixe

ver (que) algo, entre

o entulho de minirruínas,

reboco de sonho,

insetos, seringas (e ainda

deu tempo de pensar que mesmo

quando à risca o roteiro

de aprender um ofício, beijar

alguém na

testa à noite, a fila dos dias, lenta,

verte este gosto ruim

de nuvem, de choro a seco), algo,

no coração do lixo, sob

um céu enferrujado, algo breve e

sem asas, exausto, apátrida, algo morre




[Do livro Nenhum nome onde morar. 7Letras, 2014]




MÚSICA AMBIENTE



por sermos 


carne e 

equívoco


esta sorte à meia-luz:


a eucaristia de um sábado no zoológico

poltrona e silhueta de rasgo 


e


porta à esquerda.             mesmo vaso.

mesmo

colóquio de intervalos


pois a prótese.


o bonsai.


(enquanto, costurar

hiatos)

:

nosso

o sumo dos dias.       )os azulejos(


por sermos fenda e véspera,

esta coleção


de ocasos.







INCÊNDIO



Incomodava os cotovelos/ternura pa

quidérmica/ a mandíbula/ e outras cois

sas cruas/ ali amontoadas/ algo mãe al

go Esparta/(dizer vaga sobre a chuva)/

como um postal, olhava/ em passos 

estrangeiros/ estalando gravetos

/

o incêndio da tarde/

outra paisagem



[Do livro Primeiro as coisas morrem. 7Letras, 2004]



julho, 2020



Diego Vinhas nasceu em Fortaleza, em 1980. É defensor público e participou de antologias do Brasil, EUA e Portugal, além de ter publicado em diversas revistas, como Inimigo Rumor, CULT, Sibila, Escamandro, Modo de Usar & Co, Oroboro, Gueto, Zunái, dentre outros. É autor dos livros de poemas Primeiro as coisas morrem (2004), Nenhum nome onde morar (2014) e Corvos contra a noite (2020), todos pela editora 7Letras.


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