©angelina chavez

 
 
 
 
 
 
 

Capítulo 1 – Pitanga



Ela caminha pela 7 de setembro. 

Já passam das duas horas da madrugada. 

É uma avenida larga, com canteiros centrais, cheia de prédios, uns encostados nos outros. 

Não há respiro: cimento com cimento, estupidez com estupidez...

Os estabelecimentos comerciais estão todos fechados. 

As luzes dos apartamentos rareiam. 

Curiosidade talvez, mas já não se ouve mais com a mesma intensidade os ruídos dos carros, tão comuns durante o dia e até uma certa hora da noite. Eles dão um acabamento à cena bem ao fundo, quase que imperceptíveis.

Em algum momento um ou outro som de buzina, freada, acelerada, ganha corpo, mas se dissipa fácil, longe, distante da cena. 

A cidade sente o peso do dia anterior e se comunica de outros modos.

Não é inverno, mas há uma névoa que lhe dá um ar de sobriedade.

Algo que a torna pegajosa. 

Mesmo que não chova, a cidade goteja. 

Emoções, sentimentos, angústias, talvez seja disso que esteja falando.

Cinza.

Achei que a palavra cinza seria precisa sozinha na linha acima — já tenho minhas dúvidas. 

Ela se locomove num desapego com o que lhe rodeia.

Os passos têm um ritmo próprio, não deixam rastros e não fazem barulhos. Pra ser mais preciso, os rastros, imagino que não. Não os vejo, ou não lhes dou importância. Os barulhos são amenizados pelo material do qual o tênis foi feito. Esportivo. Leve. De uma boa marca. 

Em algum momento ela entendeu que calçado barulhento chamava atenção àquelas horas da noite.

O sinal está aberto pra ela que não teve a mínima preocupação em levantar a cabeça para conferi-lo. Instinto. Confiança. Não sei dizer. Apenas seguiu mantendo o passo das quadras e dos cruzamentos anteriores.

Aumenta, consideravelmente, na quadra atualizada pelos passos, a quantidade de mendigos que dormem embaixo das marquises enrolados em trapos velhos e deitados em cima de pedaços de papelão.

 A única coisa que lhe chama a atenção na imagem viciada é a marca de um sabão em pó que ela visualiza em uma das sobras. Chama a atenção e deixa de chamar do mesmo jeito. Não passou de um detalhe. Ficou pra trás. 

Na esquina com a Rio Branco ela dobra à direita.

Já está próxima de casa. Ou pelo menos bem mais próxima do que se encontrava há alguns minutos atrás. 

Não vê a hora de chegar.

Está ofegante.

Mora no sétimo andar de um prédio mais velho que novo. 

Como se isso tivesse algum tipo de importância, afinal, os novos já soam velhos logo depois que parecem prontos.

Agora já está bem perto.

Perto mesmo.

Um pequeno lance de degraus antes de passar pela portaria e...

O porteiro estava dormindo.

Seguiu com menos ruídos.

Controlou a respiração.

Elevador sujo, ainda com uma capa que o envolve na parte interna em dias de mudança.

Chave na mão.

Entra em casa, acende a luz e joga a bolsa sobre a cadeira. 

Tira o calçado por ali mesmo.

Lava as mãos na pia da cozinha. 

Olha pela janela.

Uma janela — que dá pra do vizinho, colada, rente — de uma imagem embrutecida pelo de sempre, como a imagem que circula na televisão aberta.

Olhar pela janela e olhar um canal da TV aberta já não lhe oferece mais de nada.

A imagem parece excesso mesmo onde não deveria ser.

Permanece parada por alguns instantes, com o olhar perdido na repetição que a vida lhe oferece. 

Vai até a geladeira.

Abre. 

Olha.

Fecha.

Se distrai olhando os imãs de geladeira, neles uma lembrança de Buenos Aires junto com outros que oferecem serviços de tele-entrega.

Caminha pela casa.

A roupa deixa caída no piso do banheiro.

Toma um banho demorado.

O sabonete — neutro — percorre o corpo inúmeras vezes.

Brinca com a espuma.

Deixa a água escorrer levemente pelos atalhos do corpo. 

Há um movimento prazeroso que ela faz com a perna direita, esticando o pé levemente a frente para que a espuma se desprenda e corra para o ralo.

Também fez com o esquerdo. Menos vezes.

Tem um olhar que se perde na leveza que o banho lhe dá.

Depois de se enxaguar e se secar, passou creme no corpo. 

Pitanga. 

Perfume pitanga.

Escova os dentes.

Deixa o banheiro com os cabelos ainda molhados. 

Não há como não sentir o cheiro dela entrando no quarto. 


Ele está deitado de barriga pra cima.

Acho que é isso que se pode dizer sobre ele. 

É o suficiente por hora.


Ela sobe na cama.

(Porra, preciso falar do perfume dela de novo. Daria pra ficar parágrafos... ai... deixa pra lá.)

Conhece todos os atalhos.

Há, naquele campo que se chama cama, um jogo que se joga. 

Há um jogo que se joga sempre.

Naturalmente, os dois já pactuaram as regras.

Nós, os míseros observadores, não precisamos saber quais são. 

Ela chega bem perto, olha ele na penumbra e o reconhece tateando. 

Usando o corpo dele como apoio para o movimento de aproximação, encaixa as pernas na lateral do rosto e as mãos em seus cabelos.

Segura-o firme.

Força medida.

Mas firme.

São incontáveis selinhos.

Delicadamente.

Lábio com lábio.

O corpo dela encosta no dele e se retira lentamente.

Encosta.

E se retira.

Não queria uma elipse agora. 

(Afinal, até eu sinto tesão enquanto escrevo e enquanto narro. Não, esse Eu não é a mesma pessoa.)

Encosta e se retira.

Reforço, faz isso incontáveis vezes.

Até que ela enquadra o corpo novamente. 

É mínima a diferença. 

Quadril. 

Mas é necessária. 

Precisa.

É do corpo que clama o que o outro pode lhe oferecer.


Ele tem a barba por fazer.

E uma cova quase que imperceptível no queixo.

Imperceptível por causa da barba.

Pra ela não.


Ela, num deleite com a vida, começa a roçar o corpo no dele num compasso medido que vai ganhando outras intensidades.

A boceta se encaixa perfeitamente.

Quando o grelo passa na cova do queixo as pernas, que estão coladas no rosto e sentem a barba lhe roçar a pele, parecem se desprender do corpo. Se mantém suspensas no ar. Como as asas de uma borboleta. Uma aura, uma fantasmagoria...

Há um livro de Freud no canto da cabeceira da cama. 

Freud está ali, na capa; nunca de olhos fechados em momentos como esse.

Pensem no close: o grelo tentando se acomodar naquela pequena frincha que se abre nessa saliência do rosto que chamamos de queixo. 

Naturalmente, considere alguém que tenha queixo, explícito, sensual, feio, torto, não importa;

Saliências.

É na saliência (ou na falta da) que ela se diverte.


Ele, quase na condição de objeto, com os olhos mais tempo fechados do que abertos e com a respiração pausada, lenta, pausada, ou tentando deixá-la pausada, lenta... apenas atende aos movimentos do corpo dela. 

Os ruídos são abafados.

Introspectivos.

Com certa resistência, a segura com as duas mãos pela cintura. 

Segura na cintura dela como uma criança que segura o copo d'água com as duas mãos com medo de deixá-lo cair.


A respiração dela agora é ofegante.

O cheiro de pitanga entra pelo nariz como uma melodia que se acomoda docilmente nos ouvidos.

Gemidos.

Ouvem-se gemidos que martelam o silêncio de quem dorme. 

Ou de quem insônia.

Há junto um grito preso a ponto de saltar do corpo como se fosse uma profusão de sentidos.

Já estão próximos dos poucos sabores que a vida oferece.

E ela se contém. Mas mesmo assim deixa à mostra uma sensação de asfixia que a domina e que anuncia que terá final estonteante.

Finais.

E recomeços.

E segura o gemido que, mesmo assim, soa como se fosse uma freada de carro ou um móvel sendo arrastado. 

Num timbre agudo, esganiçado. 

Pra dentro. 

E segura o gemido.

Solta.

Segura de novo.

O corpo dela já se dissipou no espaço.

O tempo e o espaço são outros.

Não cabem no tempo e no espaço dos outros.

Há um rio que corre dentro na direção da cachoeira. 

Ou uma intensidade que soa como um rio.

Depois de pequenos silêncios que pontuam os gemidos, a corredeira se desprende do corpo.

Ela grita.

Desaba.

Cai no hall do prédio. 

Num hall alegórico em que todas as janelas de todos os apartamentos a rodeiam.

Ela está exposta aos olhares moralistas dos moradores do prédio que a observam das janelas de seus andares. Todos eles com suas cadernetinhas de fracassos que as escondem dos outros atrás das fotos (que circulam pela internet) de pessoas felizes. Os olhos carregam passados temperados por desilusões. Passado é passado, mas quando continua alimentando o presente e ditando quais são as regras do jogo — algo como um retrovisor maior que um para-brisa —, é porque o sentimento não passa de uma prisão. 

Essa é a sensação que essas pessoas passam, presas às decepções da vida. 

A decepção é um martelo que te espanca os miolos. 

Um a um.

Elas não sabem falar do coração. 

Não sabem falar com o coração. 

Aí rangem suas decepções uma a uma, uma na outra, pra falar da vida dos outros.

Rangem no outro.

E nesse espaço chamado vida dos outros, cabe naturalmente a acentuação moral entre o que pode ser feito e aquilo que não pode. Entre o que pode ser usado e aquilo que não pode. Entre o modo como as pessoas devem se comportar e o modo que não podem...

Ela, puxa vida, ela parece um mimo. 

Exposta.

Expulsa.

Fatigada.

Se entregar ao prazer dá um ar de irresponsabilidade. 

Ar gostoso, esse.

Não tenham dúvida.

Que se foda o mundo que não trepa.

 

 

 

março, 2020

 

 

Demétrio Panarotto (Chapecó/SC, 1969). Doutor em Literatura (UFSC) e professor de roteiro no curso de Cinema da UNISUL. Músico, roteirista, poeta, escritor e idealizador do programa Quinta Maldita (na webrádio Desterro Cultural) e do PIPA Festival de Literatura (na companhia de Juliana Ben). Publicou: Borboletas e Abacates (Argos, 2000); Mas é isso, um acontecimento (Editora da Casa, 2008, poemas); 15'39" (Editora da Casa, Alpendre, 2010, poemas); Qual Sertão, Euclides da Cunha e Tom Zé (Lumme Editor, Móbile, 2009, livro/ensaio); Crônica para um defunto (dengo-dengo cartoneiro, 2013, poemas); O assassinato seguido de La bodeguita (Butecanis Editora Cabocla, 2014, contos); Poema da Maria 3D (Coleção Formas Breves, e-galáxia, 2015, e-book, conto); Ares-Condicionados (Nave Editora, 2015, contos); A de Antônia (Miríade, 2016, infantil); No Puteiro (Butecanis Editora Cabocla, 2016, poemas); Café com Boceta (Butecanis Editora Cabocla, 2017, poemas); Blasfêmia (Butecanis Editora Cabocla, 2018, poemas); 18 Versos para o funeral de Demétrio Panarotto (Papel do Mato Oficina Tipográfica, 2018, poemas), Tratamento da Imagem (Patifaria, 2018, conto); Arquipélago (Patifaria, 2018, infantil), Lotação (Medusa, 2018, poemas) Vozes, Versos (Martelo Casa Editorial, 2019, poemas, com Ana Elisa Ribeiro e Marcelo Lotufo). Responsável, ainda, pela Organização de Livres Somos Versos, em parceria com Arlyse Ditter (ACB, 2018, poemas) e Cartaze, em parceria com Arlyse Ditter (ACB, 2019, poemas); mais alguns discos e alguns filmes. Reside em Florianópolis/SC.


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