©philipp falkenhagen
 

 

 

 
 

 

 

 

Desveladamente



Não fale apenas das tuas alegrias:

quero saber de verdade o que te dói.


Não me refira só às tuas conquistas:

quero saber em que ombro choras

as tuas derrotas.


Não me mostre só tuas tatuagens:

quero poder tocar uma a uma

as cicatrizes tuas.


Não conte apenas dos voos que levantas:

quero saber do duro choque com o solo

quando te ferem as asas.

E mesmo vendo sempre teu sorriso,

quero saber daquela lágrima que negas

e que adivinho sempre ali, seca e colada.


Tens o direito de mostrar o avesso.

Assim, não conte apenas de caminhos

de cores e luzes

e de manhãs ensolaradas,

sem me falar da pedra que não viste

e que te fez cair,

nem dos escuros que surgem de repente

em meio à estrada.


Despe a couraça.


Quero te ver inteiro e nu,

verso e reverso à mostra.


E assim sem máscara

nem outro qualquer disfarce,

eu poderei te amar então,

despido assim,

humanamente humano.







Solo



Cantava só

Cantava a sós

Cantava ao sol

Cantava soul

(cantava jazz, cantava blues)

sambas-canções

e O Sole Mio


"Vem pro coral"

tantos chamaram

Chamaram tanto

e insistiram

que até tentou

esse outro estilo


mas

desaf(t)inava

"Tente outra vez"

(Não conseguia)

"Não fique só

Não vão te ouvir"


Mas assim mesmo

desistiu

e se voltou

para o seu canto

E só cantou


E cantou alto

cantou baixinho

e cantou tanto

que

naquela tarde

um rouxinol

chegou até

ao seu jardim

e um bem-te-vi

trouxe palhinhas

e

ali na concha

de sua mão

teceu o ninho


E ela canta

agora só


(com passarinhos)







Confidências do mar



Bate-me aos pés e me conta segredos: amou ilhas distantes

virgens, antes da atual paixão

a prostituta

que se entrega a todos

navios e outros tantos

que lhe usam o corpo. E partem

deixando de lembrança

o sêmen gonorreico

E aos que também a meretrizam

crescendo enfileirados: montes altos de concreto

cheios de homens, bichos

e dejetos


À tarde caminho ao longo

da sua franja suja

que me molha os pés. E ele explica:

um dia ela — amada amante

vai se desvencilhar de todos eles

(já tenta fazer isso)

e de novo limpa e bela como poucas

será só dele

que pergunta:

Mas vou amá-la tanto assim, quando ela for

no fim

tão parecida com todas as outras?







De_Coro



De todo o coro

que se demora no palco

fique fora

seja nota que destoa

que

pode haver sempre algo

em tudo

que mil vezes entoado

seja só mentira pura







Do outro lado do espelho



...e como demoravas

saí à tua procura


pensei estar errado o endereço:

no umbral meu nome

escrito pelo avesso


na sala um grande espelho


em que olho e não vejo

o meu rosto nele

mas retalhos dispersos

de um quebra cabeça


louca a mente

busca juntá-los

em alguma forma

compreensível


inutilmente


a noite chega e lhe faltam ainda

as partes da parte do meio

as do início do fim

e as do fim do começo


então a angústia me desperta

sento na cama

vejo tua sombra

em frente do espelho

em que escreves

de trás para frente






Vem!



vou

jogo-me de encontro à parede

atravesso o espelho

e te abraço e me beijas

e enlaçados ficamos

e morremos


assim


para muito além


do outro lado

do espelho







Vigília



Das brumas do porto

avisto teu navio no horizonte

saíste há tanto tempo de outras terras

pra vir ao meu encontro


como em outras eras

eras outro e me acenavas

com sinais de cores

de luzes e festa


mas desde que fiquei à tua espera

no horizonte desse mar

se fez neblina espessa


não sei se vais chegar

e já começa

aquela inquietação tão própria

das mulheres

que na praia esperam

— vendo o mar encapelado

pelo vento —

a volta de um barco de pesca


e o coração me aperta


ao ver vultos e sombras

nas sombras que se adensam

e desfazem o barco, o sonho, as esperanças

de um reencontro e de recomeços


Já não te espero

e mal te reconheço

no pouco que ficou de ti

num barco desfeito







No Espelho



Que estrela paira sobre o céu de tua cama

enquanto tua alma desliza pela cor da noite?

Que visões os teus olhos acompanham

enquanto os sonhos buscam resgatar-te ao corpo?


A que sol és fiel?

A qual chama seguem os teus passos

enquanto tento impedir minhas mãos

de segurar-te e te prender à vida de cada dia

e — para sempre e completamente —

ao lado meu e dentro de mim?


E por onde vagueia a tua alma

enquanto tua voz discorre sobre o todo-dia

disfarçando tua condição de fogo e luz


que me queima e que me cega

e vai fazendo de mim a cada encontro

alguém a quem não mais identifico no espelho?







Do amor como liturgia



Chegou como Anunciação

envolto em cantos de anjos

e Poesia


Foi muito além de Paixão

Foi minha Páscoa de libertação

minha Ressurreição de luz

Epifania


Tempos de Comunhão

e de alegria

Foi Pentecostes em minha via

(falei até em línguas

que desconhecia)


E pouco importa

se saiu

batendo a porta um dia


Seu Advento

foi o meu Natal







Missal



I - Liturgia da Palavra:

Teus versos

meu Universo


II - Ofertório:

Na patena

um grande amor

e os sonhos meus


III - Consagração:

Nas tuas representações

eu te adorei

como se adora um deus


IV - Comunhão:

Um cálice vazio

Em tuas vazias mãos

nem migalha sequer

de qualquer pão


V - Canto Final

ou

at last:

ITE, MISSA EST!







Petite fleur



No seu vestido molhado

das chuvas da primavera

espia discreta quem passa

ela

que humilde

não se imagina tão bela

e nem se sabe poema


Mas

como diria o poeta

"só a alguns

a que tal graça se consente

é dado" parar pra vê-la.

e lê-la


E os que amam

(quem sabe?)

consigam talvez ouvi-la

e até mesmo entendê-la


como disse outro poeta

falando sobre as estrelas







Fênix



Um vento leve varreu a última poeira de ti mesma

Por um instante o reino do nada se instala

e se vislumbra um império de mil anos

de ausência total

de silêncio profundo e

de escuro, escuro...


Então um clarim não se sabe de onde

anuncia um novo parto de ti mesma

A dor

a alegria

e o recomeço de um tempo novo

e de um círculo eterno


Enquanto um deus mudo e indiferente

preside sonolento

à tua vida eterna

à tua sede

á tua busca

Ao teu encontrar nunca







Ensaio



Tento um retrato teu

rascunho aqui e ali

me esmero em te pintar como te vejo

ao terminar estão ali mais erros do que acertos


Carreguei tinta

onde és transparente

deixei lacunas onde talvez

tua parte mais densa


Querendo então capturar

a imagem real e verdadeira

no teu caminho espalho espelhos


Inútil

passas de longe

e tua imagem fugidia

mal se reflete neles


Então chego bem perto

olho nos olhos teus

e ali me vejo

e sei que estás nos olhos meus

também


E o poema chega ao fim

com dois retratos assim

perfeitos e completos

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Máyda Zanirato nasceu em Paraguaçu Paulista/SP. Formou-se em Letras pelas Faculdade de Ciências e Letras (UNESP) de Assis/SP. Durante vinte anos, escreveu sem divulgar seus textos. Somente a partir das redes sociais começou a publicar o que havia em suas gavetas. Foi incluída nas edições do Livro da Tribo, de 2019 e de 2020; na coletânea Filhas de Maria & Valentim: Antologia Zanirato (São Paulo: Ixtlan, 2015. Org. Silvia Helena Zanirato) e Antologia Bacana! (Rio de Janeiro: Personal, 2019. Org. Cairo Trindade). Vive em Santos/SP.