©nino carè
 

 

 

 
 

 

 

 

bradado



eu sou o lobo, o louco

que uiva e te arranha por dentro

eu sou o lobo, o sopro

que uiva e te esfria no vento

eu sou o lobo, o soco

que uiva e te arranca o choro

eu sou o lobo, o dono

que uiva e te chama de tolo

eu sou o lobo rouco e tonto

que uiva pra te lembrar da fera

que surta com essa conduta

de medo e miséria!







desde 1998



o vento que penetra as rachaduras

da parede putrefata

chega sorrateiro ao trago do ouvido

e murmura com voz de terror

coisas que somente a insônia conhece







coração fatiado



eu sou emocional eu sou louca

eu sou misto de tensão e comunhão

eu sou o misto da descrença e oração

mas se você me ler e ler com atenção

vai sentir meu coração fatiado 

sangrando na sua mão

quando rezo sinto que desprezo a loucura

ela na revolta me agride

me diz: você pensa que pode ser livre?

eu acanhada dou até risada e a recebo de volta

porque é ela que pulsa, aguça e ocupa

parte do meu dia e da minha escrita

porque é ela que me eleva e diz NÃO PARA







ouroboros



quero me devorar

me engolir

até substituir essa carne

que ficou fraca

quero me digerir

e aceitar a renovação

quero mastigar

toda inquietação

quero arfar ao renascer

quero sentir outra escama crescer

quero que esse eu desapareça

antes de enlouquecer







até que eu me esgote



eu preciso sonhar, antes que eu definhe

eu preciso acordar e ainda assim sonhar

antes que eu definhe

antes que meu corpo caia no chão frio

e meu rosto tenha tons roxos

eu preciso sonhar antes que eu definhe

antes que eu vire cinzas com as flores murchas

antes que eu seja posta em uma mesa nua

eu preciso sonhar antes que eu já definhe

antes que esse mundo que por horas me tortura 

me entregue ao relato vago de quem não me conhece 

e acha que me define

eu preciso sonhar antes que eu não possa sonhar







ABL (dedicado a Conceição Evaristo)



eu não quero ser imortal

eu não quero uma cadeira

eu não quero ser a melhor


eu sou feita de esqueleto

carne nervos e vísceras 

sangue por baixo da pele

que colorida me veste


eu não quero me sentar

quero permanecer em pé

ereta perante a indiferença

que me encara e respira 

descaso por entre meu cenho


eu permaneço quem sou

nem a melhor nem a maior

apenas eu em uma escala de

Sol porque Dó não cabe a mim







proposta



me ama na beleza da falha

essa carne já foi cortada em navalha

e hoje sangra versos sem fim

me ama na beleza da falha

que me faço tua e te eternizo em mim

me ama na beleza da falha

que curo seu tédio, viro seu remédio

pra desilusão e experiência ruim







princesa bijoux



Uma cadela ao lado de dois filhotes

Patas cruzadas e olhar vazio

Os filhotes brincam em círculos

Pulando e fazendo grunhidos

São pequenos e catarrentos

Ela ali ainda que distante

Mira uma sirene de longe e começa a latir 

Os filhotes não esboçam nenhuma reação

Em baixo daquele toldo eles são invisíveis  







animal racional



Me beijou como se duas bocas tivesse

Me abraçou como um polvo e oito tentáculos

Me tomou em erupção

Ao fim, frio como a neve do ártico

Me deixou como se desprovido de coração fosse







culpa



porca

lenta

burra

surda


puxa

empurra

grita

estupra



roupa

longa

curta


Puta!







crua



eu que cantei com a voz da baleia

que andei com a coragem de um lobo

que rastejei com a astúcia de uma víbora

hoje me vejo viva

viajando no espaço e reflexiva

jamais deixarei de estar na pele dos bichos

ou no balanço das folhas

jamais deixarei de ter ataques de fúria como os vulcões

ou de permanecer rígida como um iceberg

porque eu sou tudo

ainda que me ache no nada

eu sou a natureza sem rodeios

sem romantizações

eu sou a natureza crua

com sangue nas patas

e carne nos dentes







Colagem



Acusas

Me fere

Diz que não sei amar

Sou os recortes de um estudo maior

As palavras soltas na revista

de um sebo do centro

Como cola grudo em paredes

proibidas e lanço desejos

não atendidos

Você saindo pela porta

não era um deles

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Maya "Monstra" Viana é poeta e colagista. Natural de Mauá/SP, autora do Fera Ferida Made in Mauá (Penalux 2020). Tem textos na Revista LiteraLivre e no site Ruído Manifesto. Participou da antologia Sangue, da Urutau, da plaquete Microfone - Clipe (2019), coletânea Carnavalhame, 4ª edição, e estará na obra fotográfica Lutas e Lentes: Retratos da Resistência pela editora Hecatombe, que deve ser lançada em 2021.