©duncan nelson

 

 

 

 
 

 

 

 

Por mais que te cante o corpo

 

 

Por mais que te cante o corpo

lembra-te: a vida é esse pássaro

enlouquecido que morre de

encontro aos espelhos na ânsia de

um nome. Lembra-te:

é preciso pagar os juros da dor.

 

Virão os frutos de todas as estações e a

música mínima que habita a folhagem,

soletrando, folha a folha, como um labirinto,

a escrita interminável nas pedras, nas

árvores, a escrita do mundo, multiplicando-

se.

 

E vislumbrarás, entre as tuas noites, as

pequenas, humanas glórias, o que poderia ter

sido, nesse naufrágio da luz, continuarás a

alimentar esse pássaro que floresce na sua

noite: o exílio, a alma que se esmaga na

superfície dos espelhos, eternamente

devorada pelo tempo.

 

 

 

 

 

 

A Mulher-Árvore

 

 

Havia séculos

E, à medida que a manhã avançava, a chuva

crescia no ar, a mulher mudava e o vento dançava,

na perfeição das coisas o rosto mudava, no beijo

da luz,  um mapa enrugado, o olhar petrificado

pelo tempo, o cabelo negro ondulando na brisa.

 

A mulher cantava, voz de seiva, maldizendo a teia

de raízes que a prendiam ao solo, clamava pela

chuva, pelos pássaros que nela pousavam,

tranquilo, o sussurro do vento.

 

As manhãs avançavam por essa terra muito

antiga, as estações do ano sucediam-se como

páginas e ela mudava o rosto. Havia séculos e ela

envelhecia, atravessando a voz da terra quente,

era assim desde o início.

 

Intranquila era a epiderme das imagens e

nós mudávamos, sem cessar. Havia séculos

que, feridos pela mãe da beleza,

esperávamos, rasgando a incompletude, no

galope das palavras que se sucediam.

 

Havia muito tempo, escrita sobre escrita,

nas árvores, nas folhas e nos segredos da terra.

 

 

 

 

 

 

Ausência

 

 

É apenas um nome no lugar de

outro, o limiar do mundo, onde, a

cada momento, se convoca e se

espoja a luz.

O anjo ferido de incompletude, a voz sem

eco o olhar que não se devolve, a palavra

que cala o que anseia ser.

 

Desenha-se o vazio à volta da gramática,

renegada forma sem corpo.

 

 

 

 

 

 

Recusa

 

 

Pedem à mulher que se sente

e sossegue o fogo dos gestos,

pedem-lhe que ilumine a

noite que há no seu corpo.

Pedem. E ela morde os

lábios, um não, o grito.

 

Pedem à mulher que se cale e

que não escreva a loucura que

traz nas mãos, o tropel que

avança no seu ventre. Pedem.

 

E pedem-lhe que siga,

que deixe de ler as estrelas quando

ela já nada pode. Pedem.

 

Pedem-lhe que deixe de amar a madrugada

e que não acredite na liberdade.

Não existe, dizem.

 

Mas a mulher traz a ferocidade nos pulsos, não

dorme e vela a noite como um lobo, aperta os

lábios, não chora, dança, nua e descalça, sobre

o fogo das palavras, não teme a escuridão nem

as feras que descem da montanha para a ver.

 

A mulher conhece o som  do coração da

terra, escuta a fala das árvores, o salto

do tigre.

 

E ela sabe que só a dança

salva o grito. Luta. O corpo

desarmado e nu, o canto

selvagem que nasce de si,

na desvairada recusa.

Dança.

 

 

[Poemas de Sílabas de Água. Porto: Ver o verso, 2006]

 

 

 

 

Despertar a voz, seguir o traço

 

 

É o mais difícil, este gesto

de amanhecer a palavra, o poema,

deixando-nos a sós com a brancura da página.

 

O canto não chega, quando o chamamos

tal como a luz não vem,

senão de mansinho,

quando os flocos da noite se desvanecem

em orvalho límpido e claro.

 

E então a canção irrompe, novamente,

mas apenas para aquele que se senta à beira do início,

do seu início, e escuta.

 

É o mais difícil, este gesto

de descer à sombra, ao sem-fundo da linguagem,

para ouvir o canto.

Que rastro, que traço é este, que nos visita

e nos desperta a voz, em manso segredo?

 

Que vislumbre nos toma e nos arrasta,

agora que um outro alfabeto nos é revelado,

exterior ao dito, anterior ao hálito da palavra,

como se as sombras dos nossos antepassados

nos percorressem, por entre os nossos sonhos,

música límpida e tão próxima,

tão imponderável na sua aura?

 

Cantam em nós essas vozes, silentes,

mas que esvoaçam no vento, invisíveis,

cantam em nós, mas as suas vozes são de rio

e tempo, de outros tempos,

em que também fomos outros.

 

 

 

 

 

Por dentro dos jacarandás

 

 

um deus que caminha

invisível, por dentro dos jacarandás

desenhando a orla da noite

o arrepio do mar.

 

os barcos esperam-no

quietos, guardando a luz,

os olhos do deus, o seu deslizar

entre as águas tranquilas.

 

 

 

 

 

 

Encantamento

 

 

caminho descalça, noite adentro

noite branca, que me arrasta

para uma praia antiga

onde o tempo já não existe,

e caminho no encalço dos deuses,

lado a lado com os animais

que nascem das vagas, como se houvera

este canto puro, que nada apaga.

 

Porque não me deixam ser assim,

Flor no fruto, pegada na areia,

rosto na chuva

ou corpo ao vento,

Que sopra da eternidade?

 

 

 

 

 

 

Vem do lugar do vento

 

 

esta manhã que se ergue,

rasgando a noite, sobre o mar.

 

Os meus olhos abrem-se lentamente

saio do sonho para a alvura do dia

este é um lugar, penso, onde quero estar

um lugar que nasce do mistério

e da fundura da noite,

e se abre na pureza do dia.

 

Não quero macular nada,

apenas ser, entre o vento e a luz,

seguir o grito das aves

como se fora a primeira vez.

 

 

 

 

 

 

Do nome ao traço

 

 

Quando as palavras se recusam ao teu jugo

nada resta, é verdade,

a não ser esta vontade surda, imperativa,

de fazer implodir os limites,

a cerca do mal, que te impede o canto.

 

Volta atrás, persegue o fio secreto,

a magia que há em cada nome, soletrando

a vida, o incêndio que há nos seres

que olhas e queres chamar.

 

Balbucia-te, então, a linguagem,

leva-te ao imponderável dessa luz

que refulge, no íntimo de cada ser,

em secreta celebração,

que apenas ao silêncio pertence.

 

 

[Poemas de O Traço do Anjo. Porto: Edium Editores, 2011]

 

 

 

 

Do ínfimo

 

 

Não sei senão do ínfimo

e do murmúrio das pequenas coisas,

as que não chegam à palavra

como a sombra ou o vento

desenhando-se sob os álamos,

em quieta reverberação.

 

 

E nada sei, senão desse canto

Invisível, mais sonho que metáfora,

do tempo que é no fruto

ou do que sabe ser sol, sem alarde

do breve e da passagem.

 

E nada sei dessa grandiloquência

dos homens, das suas promessas

e dos gestos que traem o coração,

dessa palavra ou excesso que mata

a perfeição circular do instante.

 

Se é vida, sangue ou oiro,

nada sei, nada de nada

escondido que ele é

no ínfimo e na sombra. Oculto.

 

 

 

 

 

 

O eco

 

 

Partimos na frescura da manhã

e só o coração nos guiava,

ouvindo os sinais, a intermitência do vento

que percorria a floresta,

escutando o murmúrio da fonte.

 

E nada nos era vedado,

pois outra era a nossa busca

inumana e desmedida,

por dentro dos nomes

e dessa página aberta

que era a nossa viagem.

 

E nada nos era vedado

porque outras eram as margens,

outro o desejo, no avesso do dito,

habitávamos as entranhas do tempo

como quem se demora,

sabendo que nada permanece.

 

E nada nos era vedado,

nessa jornada onde o medo era também liberdade,

outra a nossa fala, esse balbucio

implodindo florindo no silêncio.

 

E nada nos era vedado

porque outra era a nossa pátria,

esse canto que subia no coração do dia,

entre a promessa e o exílio.

 

E nada nos era vedado

porque nunca se parte

nunca se sai, somos chamados,

prisioneiros da mão do destino,

 

no limiar da sombra ao ser, sonho breve.

 

 

 

 

 

 

Irmãos

 

 

Somos irmãos da luz

e bebemos o sonho

habitamos a folhagem

a noite e o tempo,

como quem nasce da água

e bebemos a voz

e a linguagem, descendo.

 

Somos irmãos da terra

cantamos dançamos

ao som do fogo

e olhamo-nos como espelhos

tememos comemos

as palavras dos homens.

 

Somos da sombra os nomes

lavradio do silêncio

apascentado na alba

e tudo nos habita:

lua, passagem, círculo,

olho, mão, salmo.

 

Somos irmãos da escuridão

olhamo-nos como espelhos

de uma luz íntima

sonhante, na dobra da língua.

 

 

 

 

 

 

O lento passo dos nómadas

 

 

Seguir o passo lento dos animais

e mergulhar no seu ritmo milenar

na respiração das areias

e do vento, na senda dos nómadas,

caminhando por entre os dias

e as noites, sonhando linhas

de oásis e sombra.

 

Escrevendo, página a página,

esta luz, a voz sem memória,

decifrar o lento passo dos animais

e escutar o coração das estrelas,

caminhando numa única direcção

o vazio do horizonte.

 

E, linha a linha, como um rio

de um caudal, onde transborda o leito,

escreves, revirando os dias

semeando imagens e procurando espelhos

convocando sombras

nesse lugar que é caminho

e muro, pergaminho

fosso e ponte

na senda de Juan de la Cruz,

de Rumi, de Eckart

e de todos os famintos

de luz e de salvação.

 

O olho animal aguarda-te.

 

 

[Poemas de Do Ínfimo. Lisboa: Coisas de Ler, 2016]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Maria João Cantinho nasceu em Lisboa, em1963. Passou a infância em Angola e regressou após o 25 de Abril a Portugal. Estudou na Universidade Nova de Lisboa, onde se doutorou em Filosofia Contemporânea. É, atualmente, professora e investigadora do CFUL (Universidade de Letras). Tem colaborado com várias revistas acadêmicas e literárias prestigiadas e representado Portugal em muitos festivais de poesia internacionais. Participa de diversas antologias nacionais e internacionais. Publicou quatro livros de ficção, quatro livros de poesia e dois de ensaio.